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O PSD e a gratuitidade dos manuais escolares em Lisboa

Crónica de uma tragédia partidária: o PSD mais não quer que dar nas vistas.

1 – Manuais escolares gratuitos em Lisboa, uma medida benéfica mas não unânime

Fruto das Bases de Convergência estabelecidas entre o PS e o Bloco de Esquerda no âmbito da Câmara Municipal de Lisboa, foi acordado Assegurar a gratuitidade dos manuais escolares para os anos do 2º, 3º ciclo e ensino secundário matriculados na escola pública. Esta medida será implementada desde já, para o atual ano letivo de 2017/2018, no que refere aos manuais do 2º e 3º ciclo. No ano letivo de 2018/2019 e seguintes, a gratuitidade estende-se a todos os anos da escolaridade obrigatória, incluindo o secundário. Na medida em que o Estado venha a assumir o financiamento dos manuais, a Câmara Municipal de Lisboa alargará este apoio às fichas de exercícios.”.

Tal medida foi concretizada com a aprovação pela Câmara Municipal de Lisboa da Proposta n.º 739/2017, com o procedimento para a determinação de atribuição de auxílio económico através do reembolso do custo suportado pelas famílias com a aquisição dos Manuais Escolares no 2.º e no 3.º Ciclo do Ensino Básico da Rede Pública, com os votos favoráveis do Vereador do BE, dos Vereadores do PS e merecendo até o voto favorável do Vereador presente do PSD e com as abstenções do CDS e do PCP.

No entanto, e ainda antes da apresentação e aprovação da proposta, o Grupo Municipal do PSD apresentou na Assembleia Municipal de Lisboa uma Moção com vista a Apelar à Assembleia da República e ao Governo que remeta ao Tribunal Constitucional para que se pronuncie no sentido da inconstitucionalidade de tal medida, por entenderem que a mesma ao não se estender aos alunos do ensino privado ir pela violação dos direitos fundamentais, do Principio da Igualdade e não discriminação, consagrado no artigo 13º Constituição da República Portuguesa”. De tal forma foi descabida a proposta que nem a bancada do CDS lhes deitou a mão, deixando o PSD a votar sozinho a referida Moção.

Após a aprovação da medida, o Plenário de militantes do PSD Lisboa, seguramente agarrado ao adágio popular que explica que “há vozes que não chegam aos céus”, optou por meter os membros a caminho e apelar "à Comissão Política Concelhia que apresente exposição ao exmo. senhor Provedor de Justiça, requerendo que tome os procedimentos que considere necessários e adequados por forma a garantir a igualdade de direitos dos estudantes no acesso a manuais escolares gratuitos, quer frequentem o ensino público ou privado".

2 – O que diz a Constituição e as normas que dela dimanam?

A Constituição da República Portuguesa (CRP), estabelece como incumbências do Estado “assegurar o ensino básico, universal, obrigatório e gratuito” - artigo 74.º, n.º 2, alínea a) – bem como “criar um sistema público e desenvolver o sistema geral de educação pré-escolar” – artigo 74.º, n.º 2, alínea b). Para o efeito, o Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” (artigo 75.º, n.º 1 da CRP).

Fica assim claro que é a rede de estabelecimentos públicos, criada pelo Estado, que assegura o ensino básico, universal, obrigatório e gratuito, sem prejuízo da garantia do direito de criação de estabelecimentos de ensino particular e cooperativo (artigo 43.º, n.º 4 da CRP), as quais o “Estado reconhece e fiscaliza”, “nos termos da lei” (artigo 75.º, n.º 2 da CRP).

Significa isto que a política educativa do Estado, designadamente a concretização pelo Estado do comando constitucional da universalidade e gratuitidade do ensino básico, são asseguradas pela rede de ensino público, sendo o a frequência do ensino particular e cooperativo uma opção individual e não coberta pela universalidade e gratuitidade. A opção pelo recurso a estabelecimentos de ensino particular e cooperativa é uma garantia constitucional de pais e alunos, mas que já não garante nem pode garantir (até pela sua natureza privada) a universalidade e a gratuitidade do mesmo.

Por isso, optou o legislador constituinte por não estender a universalidade e gratuitidade do ensino básico aos estabelecimentos de ensino privado e cooperativo, sob pena da estatização do mesmo. Assim, a deliberação da Câmara Municipal de Lisboa não viola o Princípio da Igualdade (artigo 13.º da CRP), que se encontra assegurado pela rede pública de acesso universal e gratuito.

Ora, os recursos do Estado, mormente os que resultam da tributação, são alocados à prossecução de políticas públicas, designadamente as de ensino, não se justificando por si mesmo o financiamento da universalidade e gratuitidade do ensino em estabelecimentos particulares e cooperativos. Outra coisa será uma política pública de educação que através de um esquema de subsidiação assegura tal desiderato, o que é em si mesmo controverso, mas não deixa de ser uma opção com cabimento no actual quadro constitucional, desde que não signifique o desaparecimento da rede de estabelecimentos públicos.

Assim, a acção social escolar no ensino básico e secundário, enquanto mecanismo para a promoção da gratuitidade do ensino, encontra-se confinada às crianças e aos alunos que frequentem a educação pré -escolar e os ensinos básico e secundário em estabelecimentos de ensino públicos, ou particulares e cooperativos em regime de contrato de associação (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 55/2009, de 2 de Março. Como por aqui se vê, a acção social escolar é estendida aos estabelecimentos de ensino particulares ou cooperativos que integrem a rede pública, em regime de contrato de associação.

Uma das modalidades de acção social escolar é a gratuitidade dos manuais escolares, seja através do reembolso das despesas suportadas com a aquisição dos mesmos, seja através da sua cedência (artigo 29.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 55/2009, de 2 de Março), podendo tais medidas ser complementadas para além do universo de beneficiários da acção social escolar (artigo 34.º, alínea e) do Decreto-Lei n.º 55/2009, de 2 de Março), dispondo os Municípios de competência nestas matérias.

As regras de aplicação das medidas de acção social escolar estão também definidas no Despacho n.º 8452-A/2015, com a redacção que lhe foi dada pelo Despacho n.º 5296/2017. O próprio Despacho n.º 8452-A/2015, assinado pelo Secretário de Estado do Ensino e da Administração Escolar do XIX Governo Constitucional (PSD/CDS), João Casanova de Almeida, restringe a acção social escolar aos estabelecimentos de ensino da rede pública, bem como a privados e cooperativos em regime de associação, sendo que apesar de estender o regime a alunos de escolas profissionais situadas em áreas geográficas não abrangidas pelo Programa Operacional Capital Humano (POCH), não estende aos alunos dos demais estabelecimentos de ensino particular e cooperativo (ver artigo 1.º do Despacho n.º 8452-A/2015).

Por aqui se vê o acerto legal da medida, sendo aliás espantoso que o Grupo Municipal do PSD não tenha aproveitado o ensejo para estender a alegada inconstitucionalidade que de forma tão entusiástica advoga às normas paridas pelo próprio Governo que liderou…

3 – A questão política em torno da medida

Há muito que CDS e PSD vêm defendendo o financiamento do ensino particular e cooperativo, procurando esvaziar a rede pública de ensino.

Aliás, o equívoco constitucional do PSD/Lisboa tem uma origem, que admito que no subconsciente dos seus dirigentes, mas que não deixa de revelar uma preocupante alienação e alheamento da realidade, a um nível quase patológico.

Na verdade, o Projecto de Revisão Constitucional n.º 1/XI, do PSD liderado por Pedro Passos Coelho, previa a alteração do artigo 75.º, n.º 1 da CRP, que passava a ter a seguinte redacção O Estado assegura a cobertura das necessidades de ensino de toda a população, através da existência de uma rede de estabelecimentos públicos, particulares e cooperativos, promovendo a efectiva liberdade de escolha., justificando tal opção com “o expurgo da ideologia e da orientação programática e estatista do texto constitucional”.

Fosse esta redacção avante e talvez o PSD/Lisboa tivesse alguma razão no que agora vem alegar, mas a verdade é que a redacção em vigor do artigo 75.º, n.º 1 da CRP é O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população. Grave desencontro com a realidade, o do PSD/Lisboa, que confunde os seus desejos com constitucionalidade, certamente recorrendo à vasta experiência do PSD em governar contra a Constituição na última legislatura.

Isto dito, respeito a diferença política expressa pelo PSD/Lisboa nesta matéria, mas não posso respeitar o uso habilidoso e pouco sério dos valores constitucionais para a negação da própria ordem constitucional e do “Princípio de Igualdade de Oportunidades” que o PSD diz defender.

Mas ainda acrescentarei, como é possível, em nome de uma pretensa igualdade, pretender desviar os recursos necessários à promoção da igualdade de oportunidades, que se faz através de estabelecimentos de ensino de acesso universal e gratuito onde ninguém é privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento” em função de “ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (citação do dito artigo 13.º, n.º 2 da CRP que o PSD invoca) e do financiamento da frequência de estabelecimentos de ensino privados, por exemplo de cariz religioso?

Isto para não falar nas inevitáveis desigualdades causadas pelos custos de frequência dos mesmos…

Eu diria, que a igualdade de oportunidades e a proibição de discriminação, em matéria de acesso ao ensino, que se quer universal e gratuito (ou tendencialmente gratuito no caso do ensino superior) apenas pode ser assegurado pela rede pública de estabelecimentos escolares. Estender o investimento estatal à frequência do ensino particular e cooperativo, agravará ainda mais o fosso entre diferentes condições, designadamente a condição económica e social da população. Mas percebo e sinto que seja esse o objectivo do PSD, aliás bem demonstrado pela sua governação recente.

4 – O que quer, afinal o PSD?

Em primeiro lugar, o PSD mais não quer que dar nas vistas. Depois de uma copiosa derrota eleitoral, e temendo não fazer falta à Cidade, com parte do seu eleitorado capturado pelo CDS, o PSD tenta encontrar o seu caminho, sem que seja da forma mais populista e menos acertada, aliviado que está de qualquer expectativa de governar a Cidade.

Em segundo lugar, o PSD está numa disputa com um CDS que o ameaça e não viu melhor forma de o fazer do que competir com o CDS nos campos em que o CDS circula. Por isso, o PSD montou este número, para mais não assumindo o que deve ser uma luta política, antes a desviando para o campo jurídico.

Em terceiro lugar, e por último, o PSD não percebeu ainda o que lhe aconteceu. Na discussão do Orçamento Municipal para 2018, o líder do Grupo Municipal do PSD lamentava-se que o PS não ouvia o PSD e governava com o Bloco. Com alguma graça, o Presidente da Câmara respondia-lhe: “Sabe porquê? Porque as vossas ideias não são boas!”. Isto deve custar, e muito, a ouvir…

Sobre o/a autor(a)

Advogado, ex-vereador a deputado municipal em S. Pedro do Sul, mandatário da candidatura e candidato do Bloco de Esquerda à Assembleia Municipal de Lisboa nas autárquicas 2017. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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