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O PS aplicou o liberalómetro no Ensino Superior

A herança das governações socialistas no Ensino Superior, com destaque para as maiorias absolutas, são o desejo da Direita portuguesa concretizado por terceiros. Precisamos de devolver às Universidades, Politécnicos e Centros de Investigação a liberdade científica devida e a democracia.

No passado dia 16 de janeiro, foi constituída uma Comissão Independente com o objetivo de proceder à avaliação da aplicação do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES).

Faz 16 anos que o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior conheceu a luz do dia, num processo que prometia acompanhar a dita economia global do conhecimento que um pouco por toda a Europa já servia de slogan para um processo de mercantilização do Ensino Superior. A demanda de liberalização dos serviços públicos é uma das frentes do impacto da cartilha neoliberal um pouco por toda a Europa, à qual Portugal chega com algum atraso devido ao contexto revolucionário de 1974 e subsequente relação de forças favorável a um Estado Social forte com participação em setores estratégicos da economia e um poder sindical robusto. Porém, esse atraso significou que em vez de apanharmos o comboio das reformas neoliberais, acabámos por ser atropelados tardiamente nessa marcha.

O RJIES é um desses instrumentos. Aprovado em 2007 por um Governo Socialista e com Mariano Gago a Ministro do Ensino Superior e da Ciência, esta reforma ergueu-se no seio das Instituições de Ensino Superior (IES) como uma nova arquitetura institucional que reorganizou profundamente o funcionamento democrático dos órgãos internos e, com isso, moldou a missão do Ensino Superior para novos fins.

A dita reforma do Ensino Superior não chega com o RJIES. Já no início dos anos ‘90, com a política de propinas do Governo de Cavaco Silva e, já no novo século, com a aprovação da Lei de Bases do Financiamento do Ensino Superior (2003) e, em 2006, a aplicação do Tratado de Bolonha, o caminho para uma padronização global da lógica do utilizador-pagador e a importância da entrada de agentes privados no financiamento do sistemas era possível de antever. O RJIES, acima de tudo, veio acomodar essa vontade. Diminuiu-se a democracia das instituições, as relações laborais foram atingidas por uma desregulação sem precedentes e prometeu-se mais financiamento privado, tudo em nome da ideia de que a nova gestão da coisa pública será tão mais eficiente quanto a sua capacidade de aprender com a experiência e os modos de fazer do setor privado.

Se os Governos Neoliberais da década de ‘70 e ´80 representaram a grande contra ofensiva aos direitos sociais conquistados num período concreto do pós Ii Guerra Mundial, a dita família socialista europeia não perdeu tempo em ajustar o seu projeto político às leis do mercado.

A aplicação do RJIES, apesar da própria lei dizer expressamente que deve ser avaliada de cinco em cinco anos, nunca aconteceu até hoje. Apesar de várias tentativas parlamentares durante todo esse período, o máximo que o Partido Socialista conseguiu apresentar foi, em 2014, uma proposta que garantia paridade nos órgãos de gestão (chumbada na altura pela maioria de Direita e reapresentada noutros projetos entre 2015-2021, nos quais o PS votou justamente contra aquilo que havia apresentado anteriormente). Em 2017, no meio de um processo orçamental, também existiu uma tentativa, meia escondida, de facilitar a alienação de património público por parte das IES. Felizmente, as propostas existentes na altura (PS e PSD) nunca viram a luz do dia porque cada um destes partidos teve a amabilidade de chumbar a proposta do outro, de forma a não partilhar a bandeira política do aprofundamento do caminho traçado na política geral contida no RJIES. A vida política nem sempre é feita de debates ideológicos profundos, também se vivenciam episódios do maior amadorismo de que há memória.

Ainda durante as duas anteriores legislaturas, e por pressão à esquerda, o PS ensaiou uma pseudo avaliação do diploma, encomendando à OCDE essa tarefa. Pediram ao pai para se pronunciar se o filho era bom moço. E o pai disse que sim, muito bem educado e com futuro risonho pela frente. Essa encenação custou mais uns anos sem se tocar numa vírgula da lei em causa.

O PS aplicou o liberalómetro no Ensino Superior e deu positivo. A herança das governações socialistas neste setor, com destaque para as maiorias absolutas (2005-2009 e agora), são o desejo da Direita portuguesa concretizado por terceiros.

“Qual é hoje o papel das Universidades no conhecimento da(s) realidade(s)? Que investigação crítica? Que liberdade para estudar temas "malditos"? Ou seja, os que não interessam aos poderes dominantes? Os dos excluídos? Os que ficam na sombra?”, perguntava Ana Benavente numa publicação numa rede social1. Faço minhas as suas preocupações. Precisamos de devolver às Universidades, Politécnicos e Centros de Investigação a liberdade científica devida e a democracia para que a "Autonomia" seja uma realidade e abandone a sua atual condição de mantra para governos, reitores e presidentes de politécnicos se desresponsabilizarem das suas obrigações enquanto dirigentes de um serviço público.

Sobre o/a autor(a)

Museólogo. Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto
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