Está aqui

O primeiro dia do fim de uma discriminação

Bem sabemos que a democracia sem discriminações indigna o pensamento reaccionário. Ainda hoje a direita sente a universalidade dos direitos como uma ameaça. A direita votou para manter a criminalização com três anos de prisão da mulher que abortasse. A direita votou contra a lei das uniões de facto. A direita votou contra a lei do divórcio. A direita é contra a liberdade individual. A direita é mesmo incorrigível: abomina a escolha livre das pessoas na esfera da sua vida pessoal e quer impor a discriminação como civilização. Por isso propõe um contrato civil que menoriza os homossexuais. E por isso aplaude a prioridade de um referendo que procura paralisar o país durante meses, como se o direito ao casamento de uma qualquer pessoa tivesse sido até hoje escrutinado por um referendo.

A extinção das discriminações significa que o Estado garante aos cidadãos e cidadãs um estatuto de igualdade plena em direitos e deveres. Chegamos tarde a esta igualdade, e ainda há muita igualdade para conquistar, mas o respeito pela dignidade das pessoas só pode ser irreversível. Tenham a certeza, senhoras e senhores deputados da direita, que perderam no referendo do aborto e que perdem de novo quando a democracia nos ensina a todos que o respeito por todos é o princípio da civilização de todos.

Foi essa convicção sobre a necessidade de se corrigir a discriminação que levou o Bloco de Esquerda a agendar na anterior legislatura uma lei que garantia o acesso ao casamento civil para pessoas do mesmo género. Por mero sectarismo, o Governo recusou o que agora aceita.

Começaremos hoje, só hoje, a enfrentar esse gueto estigmatizante. E devemos fazê-lo na integralidade do princípio da não discriminação em função da orientação sexual que, afinal, é um comando constitucional.

Preferiu no entanto o Governo associar o fim da discriminação do casamento à criação de uma outra discriminação através de um imbróglio jurídico, impondo a proibição de os casais homossexuais se candidatarem à adopção.

Quero por isso falar-lhe com toda a clareza, senhor primeiro-ministro.

Para o Bloco de Esquerda, casamento e adopção são dois debates diferentes, e deviam ser tratados em leis diferentes como recomenda o bom senso.

O casamento depende da vontade de duas pessoas e é o seu direito. A adopção de uma criança é totalmente distinta, é o direito da criança. E é por isso regulado pelo Estado, que recusa a adopção por quem não tenha competências parentais. E essa exigência afasta certamente da adopção muitos homossexuais como heterossexuais, sempre que não tenham capacidade para acolher e proteger a criança. Aliás, esse entendimento do superior interesse da criança é o dos tribunais, que não discriminam a orientação sexual, como o comprova a decisão de um Juiz que confiou no mês passado a tutela de duas crianças a um casal homossexual.

De facto, a adopção de crianças não depende do casamento. Pessoas casadas ou pessoas solteiras podem ser candidatas à adopção. Mas, segundo o Governo, as pessoas casadas só podem ser candidatas desde que sejam heterossexuais. Para o Governo, os casais homossexuais são por natureza incapazes de constituir uma família para uma criança - e são incapazes porque são homossexuais.

E aqui começa o imbróglio. É que, para o Governo, os homossexuais podem casar-se - desde que aceitem humilhantemente que são cidadãos de segunda porque a sua vida os impede de serem candidatos à adopção.

Mas, desde que se divorciem, já podem candidatar-se a adoptar. Então, voltam a ser cidadãos de primeira.

Se viverem em união de facto e disso não fizerem muito alarde, podem candidatar-se à adopção. Se se casarem, nem pensar, cai-lhes o machado da proibição governista.

Este imbróglio é obviamente o resultado de uma inconstitucionalidade. O artigo 13º da Constituição garante o princípio da igualdade e, em consequência, que ninguém pode ser discriminado por razão da sua orientação sexual, e é grosseiramente violado, com hipocrisia, pela proposta do Governo.

Este debate é um debate sobre direitos, e esses direitos são a vida de muitas pessoas. A essas pessoas, a todas e a todos, garantiremos a dignidade e o respeito. Esse é o trabalho que começamos agora para uma lei de respeito pelas pessoas. Não será fácil. Nenhuma discriminação cedeu sem resistência. Mas a democracia é assim: vence e vencerá.

(Intervenção no debate parlamentar sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo) 

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Vereadora da Câmara de Torres Novas. Animadora social.
(...)