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O Porto entaipado

Um grupo de cidadãos/ãs decidiu ocupar a Biblioteca Infantil do Marquês, vergonhosamente abandonada pela Câmara do Porto desde 2001. Apenas três dias depois, a biblioteca popular foi despejada e o imóvel público entaipado. Rui Rio continua fiel aos seus princípios.

Foi a um sábado, a 16 de junho, que um grupo de cidadãos/ãs decidiu ocupar a Biblioteca Infantil do Marquês, vergonhosamente abandonada pela Câmara do Porto desde 2001, ano em que a cidade foi capital europeia da cultura, veja-se lá. A biblioteca, renomeada como “popular”, encheu-se de livros e de pessoas com vontade de criar lá um espaço de cultura e convívio.1 Duas coisas que a autarquia liderada por Rui Rio detesta.

Apenas três dias depois, a biblioteca popular foi despejada e o imóvel público que ocupa o Jardim do Marquês foi devidamente entaipado, não vá alguém usá-la como exemplo de como se pode dar outro uso ao espaço público que não seja o abandono e a venda ao desbarato a privados. Rui Rio continua, portanto, fiel aos seus princípios: há que destruir a cidade do Porto, para poder construir outra no seu lugar. Uma nova cidade, chique, elitista e higienizada.

Foi com estes princípios em mente que Rui Rio tentou transformar o Mercado do Bolhão num centro comercial com uns lofts para a elite. Travou-o a enorme mobilização popular e a ação parlamentar do Bloco de Esquerda, que obrigou o Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (IGESPAR) a classificar o edifício como Património Imóvel, impedindo a sua destruição. Rio reagiu apontando as retroescavadoras para o Mercado do Bom Sucesso, com maior sucesso, já que desta vez o IGESPAR achou que demolir o miolo do mercado para o transformar num centro comercial com hotel não conflituava com o seu estatuto de património.

Na mente de gente pequena como Rui Rio, os mercados são coisa do passado, tal como tudo o que é tradicional e popular. Foi esta a linha política seguida quando a câmara decidiu arrasar com a típica calçada portuguesa que cobria os Aliados e colocar no seu lugar uma placa de granito desenhada por arquitetos “modernos”. Foi este pensamento elitista também que levou a autarquia a tentar arrasar com os românticos Jardins do Palácio de Cristal, para construir um centro de congressos empresarial. O projeto terá sido engavetado, graças à oposição popular, e, como a imaginação não chega para mais, a autarquia é incapaz de ter um plano de dinamização do espaço que não passe pela sua privatização. Entretanto, mesmo ao lado, os caminhos do romântico reduzem-se a casas abandonadas e ruas em mau estado, apesar dos planos de recuperação datados de 2001.2

Foi também pensando na destruição da cultura do Porto que Rui Rio empreendeu uma guerra sem tréguas à atividade artística desprezada pelo “jet set”. Uma guerra que teve o seu expoente na entrega do Teatro Rivoli a La Feria, que o ocupou durante três anos a custo zero, enquanto as companhias de teatro da cidade foram excluídas do espaço.

Nesta cidade, que continua a perder habitantes todos os dias, vale a perseverança de quem fica e tenta criar espaços de lazer e cultura. Contra a vontade de um presidente que prometeu a reabilitação mas apenas trouxe mais degradação, há quem insista em viver na cidade e viver a cidade. A luta entre estes opostos está ilustrada na disputa entre ocupação e entaipamento, da qual depende o futuro da cidade.


Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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