Está aqui

O perigo europeu não é Londres

Em Paris está a exibir-se a morte da promessa da globalização feliz, perante um povo que descobriu que só lhe sobrou a vida triste.

2018 tem sido um annus horribilis para a União Europeia. A formação do governo italiano e a crescente popularidade de Salvini, a consolidação do grupo de Visegrado e a impunidade de Orban, o anúncio do afastamento a prazo de Merkel, a pressão de Trump e, sobretudo, o Brexit, todas as grandes transformações políticas operam no mesmo sentido, a criação de um sofrido e irresolúvel impasse institucional. Por isso, a questão chave vai ser a relação entre os governos e a revolta popular, que tem crescido precisamente num período de aumento do emprego e de lenta – ou lentíssima – recuperação salarial. O facto é que toda a década perdida desde a crise financeira de 2008 está agora a cobrar o seu preço: os trabalhadores pobres irritados com a globalização, os migrantes fugindo da miséria, os jovens cansados da precariedade e da marginalização no emprego ou na cidade, as vítimas do espaço urbano colonizado pela especulação, são multidões arrastadas pela política abissal e que começam a falar. Perante este clamor, a crise ganha uma nova dimensão com a incapacidade institucional de responder ao mal estar social e, portanto, só se pode agravar, dado que os poderes europeus só conhecem uma resposta, a litania auto-satisfatória, que é justamente uma das causas da desafeição popular. Castigar Schiller e Beethoven repetindo ad nauseum o Hino à Alegria tornou-se a última das respostas da Comissão e dos seus comissários.

Uma expressão desta arrogância é a forma como os poderes europeus, ou seja Merkel e Macron, responderam ao referendo do Brexit, que aliás autorizaram e até estimularam, para depois, perante o resultado expectável, terem transformado a negociação numa demonstração de como será punido qualquer Estado que decida a saída. E vemos agora Theresa May, afinal uma das apoiantes de sempre da ortodoxia da direita europeia, ser sacrificada no altar de Bruxelas, correndo de um lado para o outro à procura de coisa nenhuma para uma misteriosa fronteira entre duas Irlandas. O certo é que Paris e Berlim acharam, no vendaval do Brexit, a oportunidade de fragilizar uma grande economia concorrente e de atingir o poder político e militar que historicamente equilibrava as disputas continentais, e querem levar o ajuste de contas até ao limite.

O problema deste plano é que ele atinge os próprios fautores, que se vão afundando na sua teia. Assim, enquanto a sucessão de Merkel vai anunciando um governo mais inclinado para a direita e mais menos-europeu, é em França que está o mais grave perigo. Era onde morava a solução, se quem lê estas linhas se lembra do entusiasmo com o jovem telegénico, enérgico e prometedor que tomou conta do Eliseu com uma vitória empolgada e uma maioria parlamentar arrasadora. Ele era o sonho chegado de novo ao poder, era o líder que ia reerguer a Europa, era a nova política para lá das velhas divisões, era o homem que abraçava mas sabia corrigir Trump, era a estrela que nos ia guiar. As elites lusitanas deslumbraram-se com as suas promessas (mutualização da dívida, lembra-se?), com o seu arrojo (convenções europeias em cada país até fim de dezembro de 2018, lembra-se?), com a sua pose. Esperavam um salvador, um Napoleão benévolo, e ei-lo a surgir em Paris.

Um ano e meio depois, o ras-le-bol francês é avassalador. Quatro semanas de protesto confuso, milhares de detidos, centenas de milhares de manifestantes, uma barreira de incomunicabilidade entre o povo e o governo, um presidente aflito, temos a França a lembrar-se de como sempre tem sido o país das revoltas e das revoluções europeias. E descobre-se como Macron falhou em todos os planos.

Falhou na vida social. Os jornais assinalam hoje como o presidente evocou a sua condição de banqueiro de investimento ao abolir o imposto sobre as fortunas – a única medida que se recusa a corrigir, mesmo quando aparece na televisão de baraço ao pescoço – e mostrou a sua enfatuação ao dar uma reprimenda a um jovem e ao menosprezar um desempregado que o interpelaram na rua, ao lançar que nas estações de caminho de ferro se encontra “gente que não é ninguém”, ao mesmo tempo que se rodeava do fausto de Versalhes para falar aos deputados aprumados. Macron, que acredita e afirma que faltou um rei aos franceses e que, sem temer o ridículo, se compara com Júpiter, vê-se como representante de uma transcendência no país mais republicano da Europa, e era evidente que um dia a contradição cobraria a sua fatura. Foi agora, com o povo na rua.

Falhou ainda no plano político. A maioria parlamentar de que dispõe é demasiada, crispa-se em divisões, hesita perante as pressões, adivinha deserções. Com tudo isto, arrisca-se a perder as eleições europeias para Le Pen (que é a aposta de Trump), enquanto tenta compor uma aliança internacional de desesperados: prometeu listas conexas com os liberais que estiveram reunidos em Madrid, tenta seduzir o Partido Democrático, de Renzi, em Itália, a Nova Democracia na Grécia e até os Verdes alemães para o seu novo partido europeu, mas já não é seguro que seja levado a sério.

Levado aos ombros pela ilusão europeia, Macron é hoje o mais fraco dos mais fortes. A consequência é tratar o Brexit com os pés e reduzir a União a este projeto falhado de frases tão grandiloquentes como inconsequentes. Em Paris está a exibir-se a morte da promessa da globalização feliz, perante um povo que descobriu que só lhe sobrou a vida triste.

Artigo publicado em expresso.pt a 11 de dezembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
(...)