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O Panteão é uma barriga de aluguer?

Se desconfiamos dos líderes da tecnologia que pensam o futuro próximo, como podemos resignar-nos com líderes políticos que esquecem o passado recente?

Devíamos pedir desculpa a Paddy Cosgrave, CEO da Web Summit, por ser compelido a pedir-nos desculpa devido à nossa histeria em rede. Por razões culturais ou por abuso de uma posição culturalmente dominante, há quem se sinta melhor a jantar entre mortos do que entre os que cá estão. E a realidade, em equilíbrio na linha ténue entre a humanidade e a robótica, dá alguma razão a este novo culto gastro-fúnebre: "we see dead people" e, se "eles vivem", brindemos. Sobre a vida, sabe-se que a primeira barriga de aluguer autorizada em Portugal será uma avó que vai gerar o seu neto. Bonita ideia de futuro, esta, que repousa na memória e a convoca para prosseguir. É valida para monumentos e, em caso afirmativo, para que tipo de aluguer?

É perfeitamente natural que Paddy se sinta confuso face à cronologia dos acontecimentos. A organização da Web Summit procurava um local para a realização do tradicional jantar da "Founders Summit"; um local emblemático impunha-se; na vasta lista de monumentos à disposição pelo Regulamento de Utilização de Espaços da DGPC, incluía-se o Panteão Nacional; o preço era módico; a malta da tecnologia é, tradicionalmente, pouco sensível à morte física desde que não origine um "podcast"; há jantares autorizados no Panteão após 2014, ano em que Jorge Barreto Xavier assinou o Regulamento; o que não impede o ex-secretário de Estado da Cultura de sacudir responsabilidades afirmando que - se fosse com ele! - assumiria agora todas as responsabilidades; o evento poderia ter sido impedido mas ninguém o fez; só este ano, o Panteão já serviu de albergue para três eventos e/ou comezainas numa extensa lista onde constam Harry Potter, NAV, empresas várias e... a Associação de Turismo de Lisboa a que António Costa presidia, em 2013, então presidente da Câmara de Lisboa; o mesmo Costa que se atira ao jantar como sendo "ofensivo"; o Ministério da Cultura "estranha" o evento, permitido por um decreto que teve anos para poder alterar, querendo. Indignação geral e tremor de terra pela "portugalidade". Confusos? Imaginem Paddy Cosgrave.

"Os mortos não estavam na sala, estavam ao lado", consegue dizer - sem se rir - a directora do Panteão Nacional. Puxar a brasa e esquecer a sardinha. No CDS, Adolfo Mesquita Nunes, certeiro, apontou a António Costa: se o primeiro-ministro considera o jantar "absolutamente indigno" deve estender a sua indignação ao Ministério da Cultura e à DGPC que o autorizou. Mas como pode esquecer que o Governo de Passos/Portas foi o responsável pelo regulamento de 2014 e como caracteriza as autorizações dadas para os jantares nessa época? A dignidade do espaço não pode ser preservada por jantares ou eventos meramente recreativos. Se desconfiamos dos líderes da tecnologia que pensam o futuro próximo, como podemos resignar-nos com líderes políticos que esquecem o passado recente?

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 15 de novembro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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