Enquanto vigorou a tese do ‘arco da governação’, como nome da eternização do poder do bloco central alargado à extrema direita parlamentar, ‘pacto de regime’ foi a designação dada à transformação dos acordos entre centro e direita em alegados ‘grandes consensos’. Alegados porque nunca foram consensos, foram políticas escolhidas por aqueles setores da política nacional contra outros setores da política nacional. Nada mais.
Agora que o Presidente da República vem patrocinar um ‘pacto de regime’ para a Justiça, impõe-se dizer com frontalidade democrática que não há consenso possível entre as opiniões que defendem uma Justiça manietada pela austeridade e as que defendem o reforço de meios e de alcance da Justiça. Sonhar com a hipótese de um grande pacto onde uma opinião e a outra convirjam sabe-se lá porquê e em nome de quê é fazer da política um equívoco. Mas, mais do que isso, é, de facto, aspirar por uma política de Justiça que persista em não dar resposta ao que, nesse domínio, a democracia torna cada vez mais irrecusável.
É em nome da democracia que a esquerda deve lutar para ganhar uma maioria social muito ampla para quatro pilares de uma nova política de justiça. O primeiro é o do acesso à justiça e traduz-se num investimento sério na política de apoio judiciário e num mapa judiciário que garanta o acesso aos tribunais a todos/as, vivam onde viverem e tenham o estatuto social e cultural que tiverem. O segundo é o da dotação do sistema judicial dos meios humanos – leia-se funcionários judiciais – e logísticos capazes de dar uma resposta de qualidade ao volume e à complexidade das exigências hoje feitas pela sociedade portuguesa ao seu sistema judicial. O terceiro é o de uma alteração substancial da política prisional, que, por um lado, inverta a atual situação de prisões a abarrotar de uma população jovem e pobre autora de pequena delinquência ou mesmo de bagatelas penais e, por outro, qualifique numa perspetiva de direitos e de dignidade o parque penitenciário português. O quarto é o de uma formação dos principais participantes na vida judicial que, sem descurar o primor técnico, garanta a sensibilidade social e a abertura cultural desses atores.
Mas há um quinto pilar, imprescindível para uma política de Justiça nova. E esse é o do primado efetivo da Constituição sobre a legislação ordinária e sobre as políticas de momento. Um pacto para a Justiça não pode ambicionar a menos do que à criação de um Serviço Nacional de Justiça com o mesmo arrojo democrático e a mesma perspetiva estratégica que, há 40 anos, inspirou a criação desse lugar primordial da nossa democracia que é o Serviço Nacional de Saúde.
Artigo publicado no diário As Beiras, 3/9/2016.
