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O Orçamento de Estado que ignora as desigualdades de género

O relatório sobre o progresso da igualdade entre mulheres e homens no trabalho e na formação profissional parece não servir de nada quando se trata de elaborar o Orçamento de Estado que tem o poder de combater essas mesmas desigualdades.

O relatório sobre o progresso da igualdade entre mulheres e homens no trabalho e na formação profissional, instrumento importante para monitorizar o avanço sobre desigualdades estruturais no nosso país, parece não servir de nada quando se trata de elaborar o Orçamento de Estado que tem o poder de combater essas mesmas desigualdades.

O que o relatório de 2019 nos diz é que as tendências de desigualdade de género não se alteraram.

As mulheres estão em maioria no ensino superior e são a maioria dos diplomados, mas continuam minoritárias nas profissões com níveis de qualificação mais elevados. São inexistentes nas direções das instituições e há apenas uma Reitora em Portugal.

A Disparidade Salarial mantém-se acima dos 16%. Considerando todos os trabalhadores por conta de outrem em todas as empresas, as mulheres ganham menos 149€ por mês de remuneração base do que os homens. Em termos de ganho total, as mulheres recebem menos 225€ por mês. São 2.700€ a menos por ano.

Mantém-se o aumento da disparidade salarial à medida que aumentam os níveis de qualificação profissional e de escolaridade. Nos trabalhadores com ensino superior a desigualdade salarial dispara para os quase 30%. Na reforma, ascende aos quase 40%.

A segregação no mercado de trabalho em função do género também persiste. As mulheres representam 83,7% do emprego nas Atividades de Saúde Humana e Apoio Social, 77,2% na Educação e são igualmente a maioria no Alojamento, restauração e noutras Atividades e Serviços. Na administração pública, a taxa de feminização dos enfermeiros é de 83,3% e nos técnicos superiores de Saúde de 86,5%.

Nada disto é novo. Mas o que também não é novo é que as crises económicas aprofundam as desigualdades sociais. E a crise devastadora que atravessamos cria ainda mais pressão sobre as mulheres.

Porque são as mulheres a maioria dos profissionais na linha da frente do combate à crise sanitária, são as que asseguram os serviços dos cuidados, do apoio social, mas também dos serviços indiferenciados, da restauração, das limpezas.

São as que mais dependem de transportes públicos apinhados de gente e acumulam o trabalho fora de casa com o trabalho dentro de casa e o cuidado com os filhos.

São mais precárias e mais vulneráveis aos despedimentos.

Ganham menos e são mais afetadas pela perda de rendimentos e de trabalho. São mais vulneráveis à pobreza, à exclusão social, à miséria.

Por tudo isto, o combate às desigualdades de género, especialmente num contexto de crise que se vai agravar ainda mais, só se pode fazer com medidas que protejam o trabalho e o salário e que proíbam os despedimentos, que combatam a precariedade, que revertam os retrocessos imprimidos no código laboral pela troika à boleia da última crise financeira, que olhem para quem perdeu o seu rendimento e garantam que não ficam completamente desamparadas, que garantam o acesso à saúde, à escola pública, aos transportes públicos de qualidade.

Este combate tem de passar por medidas que não acrescentem crise à crise e não aprofundem as desigualdades existentes.

Tudo isto é tão óbvio que custa a compreender que o governo responsável pela elaboração deste relatório seja o mesmo governo responsável por um Orçamento de Estado que ignora tudo isto.

As desigualdades de género no trabalho não se combatem com campanhas. Enfrentam-se com medidas efetivas de defesa do trabalho e do salário.

Artigo publicado no jornal “O Setubalense” a 19 de outubro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
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