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O olhar dardeado de Nuno Crato, algures no horizonte que habita nele

A prova a que alguns milhares de professores foram conduzidos, pelo meio da humilhação, amparados uns poucos pelos polícias de serviço, envergonhados a fugir das câmaras de televisão, é um retrato do ministro Nuno Crato.

Ele empenhou-se nisto como se fosse a sua prova de vida, garantiu o exame, negociou-o com sindicatos fáceis, cedeu e comprometeu, aplicou a uns e dispensou outros, cobrou vinte euros, mandou restituir a alguns, exigiu pedido de isenção a todos, levantou a voz, mandou afixar intimações, angariou avaliadores, registou faltosos, mas prova, houvera de haver.

Quando tudo corre mal, não sobra nada. Triunfal que ele era, porta-voz de uma orgulhosa dissidência, citado por jornais como o especialista inovador e o homem da exigência, acarinhado como o ministro que arrebentaria a 5 de Outubro à bomba e que correria à bengalada todos os pedagogos eduquesianos, o homem que chegou aclamado pela turba de neoconservadores que percebem na educação o negócio do futuro, o que prometeu que a engenharia das almas seria entregue ao Opus Dei ou às conveniências laranja, Nuno Crato, ele mesmo, está agora nisto: uma prova feita à socapa, por entre vaias e correrias, aos tropeções, para uns e não para outros, alguém terá de ser, para mostrar que ainda sobra um exame e que o ministério é o exame. O meu cargo por um exame, o meu título é o exame, sou o Nuno Exame Crato.

Vem o Pisa e diz que não faltaram exames – até há chumbos a mais. Vem a OCDE e a Comissão Europeia e concluem que não faltam escolas privadas – até são más, ou onde se safam é porque têm os filhos das boas famílias. Vem o Marçal Grilo e acha que tudo isto é infeliz, nem ele. Esta conspiração cósmica contra o ministro Crato desencadeou-se hoje no seu exame de estimação. Tudo corre mal.

Mas há o exame.

E o exame tem quatro perguntas de matemática ou coisa mais ou menos. Numa marcam-se os horários de professores, sempre pode dar jeito; noutra calcula-se o tempo dos autocarros; noutra a divisão da conta num restaurante e depois num bar, seus marotos, mas é coisa prática para ensinar para a vida toda; finalmente, no quarto exercício, calcula-se quantas pessoas cabem no elevador e como se distribuem pelos andares. Autocarro, elevador, conta do restaurante e distribuição de horários, hoje saiu a sorte grande aos que gostam de coisas concretas da vidinha. Olha se era um sistema de equações e tu ensinas inglês?

Não ficamos por aqui. O exame tem ainda três gráficos ou imagens. Uma pirâmide das idades, coisa da segurança social, uma projeção de duas fachadas de um prédio e um mapa de leitura de livros pelas crianças. A professora que saiba ver suspira de alívio. Olha se eram desenho geométrico e eu ensino história?

Ainda falta a última parte, os textos. Um de Nuno Bragança, outro de Henri Matisse (então onde estava a arte? Não te entusiasmes, o que te saiu foi teoria literária), outro de Mattoso (uns ditados populares, bem saborosos, com alguns séculos de cura), outro de Sampaio da Nóvoa, e desse farás uma redação sem erros de ortografia ou de pontuação e mesmo com algumas ideias que cá estamos para avaliar o teu amor à educação, porque depois de todo o exame bem mereces dizer o que pensas e nós vamos avaliar-te assim mesmo, cuidado com o que pensas, respeitinho é muito bonito. Ora, imagina que eram textos difíceis sobre linguística e que eu sou professor de matemática?

Podem os professores que resistiram aos polícias, aos piquetes, às televisões, à vergonha, à necessidade, ao desespero, ficar descansados: têm à sua frente dezasseis páginas, o melhor exame assim-assim para não poder concluir nada. Sabem dar aulas? Que importa. Os cursos estão certificados? E eu com isso. Têm experiência? Só conta o exame.

No fim de tudo, ficará só a frase do primeiro texto, de Nuno de Bragança: “Do semblante estatuado escapava-se o olhar dardeando uma distância secreta, as pupilas filadas num ponto vital, algures no horizonte que habitava nele”. É sobre o Matos e o seu cão Ardila, ou é sobre o irrevogável Nuno Crato?

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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