O muro da inevitabilidade

porJoana Mortágua

25 de setembro 2011 - 0:46
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A inevitabilidade é um muro de Berlim que nos impede ver o horizonte e o futuro, que não nos deixa ver caminhos alternativos. Ela é a narrativa mais poderosa de um sistema económico decadente.

O muro da inevitabilidade afirma-se, ele próprio, como duro horizonte e sentido único para o beco sem saída que é a austeridade. Quem quiser escalar o muro e ver para além, ver mais adiante, encontra sempre o arame farpado do autoritarismo que cresce para tapar as brechas.

Como bem me lembrou um amigo há pouco tempo, o “presente contínuo” é a visão limitada pela opressão dos muros1. Contra esse presente alienado e sem futuro, essa inevitabilidade, há que erguer a memória como arma. Entre as coisas que a memória nos diz, há duas que estão entre as principais chaves para um futuro para lá do muro. A primeira é que “tudo o que é sólido se dissolve no ar”. E se do entulho dos muros do passado se fizeram os caminhos para o hoje, também o inevitável e imponente muro que hoje nos barra a passagem virá a ser o pavimento dos caminhos a construir para além dele.

A segunda é que também para quem ergueu a opressão dos muros “não há situações sem saída” e, portanto, “esperar não é saber, quem sabe faz a hora”. Contra a inevitabilidade de um presente viciado, reside também na força da memória a arma desta continua disputa pela hegemonia ideológica. Há que acumular memória, receber depósitos de protesto, investir em luta, lucrar em experiência. A experiência é memória activa e gera a unidade necessária para, com avanços e recuos, sermos a nossa própria libertação.

E é o muro que define as fronteiras e as alianças fundamentais. De um lado, quem está contra o muro, quem quer resgatar as vidas sequestradas pelo "resgate". Do outro, quem está com as cláusulas pétreas do memorando, de má memória, em que o inevitável muro se funda e em que afunda a esperança e a vida. Se uns fizeram outrora murais à liberdade mas hoje capitularam rendidos ou vendidos aos muros contra a liberdade, foram eles quem escolheu colocar-se no caminho a impedir novos caminhos.

Em nome dessa memória activa e do que ela nos ensina para as rupturas do presente recusamos os humpty dumptys da Historia que ao tentar o precário equilíbrio no muro têm sempre o mesmo destino:

Humpty Dumpty sat on a wall,

Humpty Dumpty had a great fall.

All the king's horses and all the king's men

Couldn't put Humpty together again.

Se somos ainda poucos e a imensa maioria não age de acordo com os interesses da imensa maioria, ou pensando atender ao presente (contínuo) trai o passado e o futuro, trai a sua vida; se somos ainda poucos ou se somos menos do que fomos, o nosso caminho é fazer maiorias com propósitos claros e horizontes precisos. E todos os caminhos passam por derrubar o muro troika.


1 Eric Hobsbawn: "Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem."

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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