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O monstro prospera

Foi em Castro Verde, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar. O impulso no crescimento de ideologias discriminatórias, facilmente conotadas ao radicalismo efervescente e extremista de direita, é o sintoma de uma democracia doente, fraca, permeável.

Foi em Castro Verde, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar. Esta vila do Baixo Alentejo que durante muitos anos manteve um corpo autárquico maioritariamente comunista, nas últimas eleições autárquicas, motivado pelas mais diversas razões, mudou para uma governança socialista.

Esta é uma terra de muitas tradições e vasta riqueza cultural, muita dela adquirida através das boas relações com as comunidades vizinhas e outras itinerantes que aqui vêm para as normais trocas comerciais tal como nos é descrito no cancioneiro contemporâneo – como o fado interpretado por Mariza: Feira de Castro.

Por força do desenvolvimento mineiro nas últimas décadas a sua economia local foi sendo transformada, substituindo as tradicionais atividades agrícola e subjacentes pela mineira e industrial, que proporcionam maior estabilidade económica para as famílias locais e que atraiu muitas outras vindas de diversas regiões em ciclo económico mais deprimido.

Este é um concelho como tantos outros e possui, tal como esses, uma comunidade cigana mais ou menos fixa no seu território.

Recentemente saíram dos Paços deste concelho a vigorosa instrução para isolar a dita comunidade sob o pretexto de proteger os munícipes e combater a disseminação virulenta.

Boas intenções as deste executivo que procura implementar soluções para erradicar uma crise sanitária sem precedentes neste século, porém pior que a própria crise quanto à proteção dos valores e garantias constitucionais da liberdade e igualdade dos indivíduos, algo que estes eleitos juraram proteger quando tomaram posse.

Rapidamente este executivo recuou na decisão de atuar vigorosamente contra uma comunidade étnica, eventualmente devido ao veemente repúdio e igualmente vigorosa denúncia de segregação, seja pela própria comunidade, pela associação SOS Racismo, ou outra individualidade ou organização.

o insidioso monstro da discriminação racial e xenófoba, até agora escondido nos mais insuspeitos lugares, vai ganhando suficiente à-vontade para se mostrar

Mas o mal já estava feito, e apesar do recuo, veio mostrar que o insidioso monstro da discriminação racial e xenófoba, até agora escondido nos mais insuspeitos lugares, vai ganhando suficiente à-vontade para se mostrar.

Este é o mesmo monstro que no século passado, quando aconteceram as crises sanitárias da gripe espanhola ou a da cólera, permitiu a segregação dos infetados para zonas afastadas das áreas urbanas. Uma solução em tudo idêntica à proposta do executivo de Castro de Verde e que por exemplo, no caso de Almodôvar, concelho vizinho, jogava para o lado de lá do cais da Ribeira os doentes e respetivas famílias como medida de contenção do problema epidemiológico. Mas havia uma falha: somente os indivíduos das classes mais desfavorecidas, maioritariamente homens e mulheres trabalhadores agrícolas à jorna, iam lá parar, quase que abandonados à sua sorte, ficando os mais abastados, senhores e senhoras donos das propriedades agrícolas, a convalescer na sua residência.

São memórias que se vão perdendo com a renovação das gerações, mas ainda é possível encontrar quem tenha viva memória desses tempos e lutou por uma sociedade melhor, mais justa e igualitária. Temos de as preservar: as memórias e, também, as lutas que foram travadas, retendo e ampliando as conquistas alcançadas.

Manter uma vigorosa vigilância, sim, é necessário, mas no sentido de isolar cada vez mais as atitudes discriminatórias e segregadoras baseadas na classe, cor, etnia cultura ou quaisquer outros determinantes característicos dos indivíduos e comunidades. É também necessário atuar quando as atitudes e orientações das instituições, organizações ou dos indivíduos, discriminem e pretendam segregar comunidades ou indivíduos pelas suas características.

O impulso no crescimento de ideologias discriminatórias, facilmente conotadas ao radicalismo efervescente e extremista de direita, é o sintoma de uma democracia doente, fraca, permeável. É indissociável deste diagnóstico os resultados eleitorais que frequente e consecutivamente dão vitória ao candidato abstenção. Ou seja, são mais as pessoas que se afastam da coisa política e abdicam de escolher a direção política dos órgãos de soberania nacional, àqueles que, exercendo o seu direito de voto, escolhem o candidato legal mais votado.

A abstenção é um fenómeno com efeitos muito perversos. Mesmo que, por um lado, no imediato, mostre o desinteresse, descontentamento a incredulidade e desconfiança, seja no sistema democrático vigente, seja nas candidaturas nos vários atos eleitorais, por outro lado, também no imediato, é uma forma de “manifestar” esse mau estar que acaba por não ter valor no sistema democrático. Mas o perigo e a perversidade deste fenómeno estendem-se para lá do imediato. A longo prazo, o costume da abstenção conduz a uma horda de eleitores cada vez mais acríticos, desatentos às realidades políticas ou, no mínimo, detentores de conhecimentos no domínio político, baseados em assunções falsas ou mal estruturadas.

É neste terreno que o monstro prospera e tal como uma erva daninha, tem de ser eliminado.

Desta vez mostrou-se em Castro Verde, mas podia ter sido num outro lugar qualquer.

Almodôvar, 30 de janeiro de 2021

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Mineiro
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