O momento Branca de Neve do Orçamento

porFrancisco Louçã

21 de outubro 2023 - 13:01
PARTILHAR

Há este ano uma particularidade, de que o Governo cuida minuciosamente: a preparação das europeias. Capturando a agenda do PSD e dos liberais, as eleições ficam no papo.

Há sempre três tempos orçamentais: o do anúncio, que espraia felicidade; o da realidade, quando nos chegam as questões essenciais da vida; e o da realização. A realização é como no cartaz da parede da tasca, volte amanhã que vai ter o hospital prometido, não está bom de ver que falta parque habitacional público? — eflúvios de Estado responsável pululam no relatório. De tão habituados à farsa do investimento público estratégico, já nem se duvida de que os Orçamentos convivem com a ilusão.

Antes vem o anúncio, o momento Branca de Neve. É dominado pela agenda do Governo, que vai pingando exemplos de como a nossa vida será melhor e deslumbrando comentadores fáceis: impostos minguantes, chuvas de dinheiro, pensões confortáveis. No entanto, há este ano uma particularidade, de que o Governo cuida minuciosamente: a preparação das eleições europeias. Ouça o ministro a falar de jovens, classes médias e reformados e terá o mapa do medo do PS: é nesses três grupos sociais que quer recuperar perdas. Quer tranquilizar os pensionistas depois de os ter apavorado com a ameaça de corte futuro de pensões (ainda é ministra a que apresentou no ano passado uma conta falsificada para garantir que, se a lei da atualização das pensões pela inflação fosse cumprida, se perderiam 13 anos de sustentabilidade do sistema, o que Costa repetiu enfaticamente?). Aos jovens oferece tudo o que veio à cabeça de algum guru de comunicação, as tais propinas devolvidas post cursum, bilhetes para comboios e turismo local, imposto zero no primeiro ano, só falta o palco da JMJ. A ideia é que, capturando a agenda do PSD e dos liberais, as eleições ficam no papo, o Livre proporá uns estudos e abster-se-á, o PAN andará pelo Funchal e tudo igual no quartel-general.

Só que há a realidade. O Governo não a ignora e mistura remendos com agravamentos. Remenda-se a pobreza: um milhão com salário mínimo melhorado, mas há famílias trabalhadoras abaixo do limiar da pobreza, mais de 300 mil pessoas precisam de RSI ou CSI, imigrantes ficarão encafuados em contentores. É assim, o salário é pobreza. Também para isso o Governo tem uma ideia: continua a cortar o salário real à maioria da Função Pública e às empresas oferece mexidas salariais por ajustes fiscais. Só que usar o IRS e o IRC para afagar políticas salariais conjunturais é um erro estrutural que um dia se desvanecerá nos meandros da política.

Usar o IRS e o IRC para afagar políticas salariais conjunturais é um erro estrutural que um dia se desvanecerá nos meandros da política

O segundo problema estrutural de que a teimosa realidade não desiste é o complexo turismo-imobiliário. O Governo acordou estremunhado para a crise habitacional e, num momento carinhoso, o primeiro-ministro até concordou com a manifestação que acusou o seu Governo de ser o promotor da especulação imobiliária. Logo, o Orçamento promete medidas: daqui a alguns dez e €15 mil milhões de benefícios fiscais a residentes não habituais o regime vai acabar, mas não se assuste, será mantido por incentivos generosos de IRS a 20%, só que não é para si. Paciência, o efeito na habitação será continuar a escalada dos preços, mas o Governo tem duas soluções: amparar a subida para algumas rendas (com um subsídio, provisório como todos) e uma chuva de benefícios fiscais e facilidades administrativas para quem construir (naturalmente, habitações para o luxo e turistas). Morreu a promessa da entrega de casas nos gloriosos 50 anos do 25 de Abril a todos os que dela necessitavam, o orçamento promete 6800 fogos para 2026, dos 86 mil que reconhece necessários. Em resumo, o turismo foi descoberto como o petróleo no Beato e está a destruir a vida nas cidades. Assim vai continuar.

O terceiro problema da realidade é o serviço público. Acumula o efeito da habitação: uma médica ou um professor não podem ir trabalhar noutra cidade sem o euromilhões. E, se há crianças sem aulas e 1,6 milhões de pessoas sem médico de família, ou o susto das urgências, o Governo responde com a previsão de um aumento da massa salarial que daria €180 de progressão ou aumento em média mensal para cada profissional do SNS, o que significa que recusará carreiras em exclusividade e acordos salariais e continuará a recorrer a tarefeiros — uma solução que já falhou. Finalmente, a transição ambiental são 4 cêntimos nos sacos de plástico e uns euros no IUC dos automóveis com 15 anos, vende-se a TAP e venha novo aeroporto.

Pode-se então perguntar se Portugal não merece ter um serviço de saúde e de educação a funcionar, salários dignos e seriedade fiscal, os centros das cidades sem carros e com transportes limpos? Merece mas não terá. Isso seriam contas de outro Orçamento.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 13 de outubro de 2023

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
Termos relacionados: