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O mito da Europa social

As políticas violentas contra os refugiados ou xenófobas contra comunidades nacionais vão crescendo com o beneplácito do centro.

Vai que não vai, somos bombardeados com eflúvios de deslumbramento europeu, como esta semana no congresso do PPE. Macron, que em pose solene é imbatível, dirá que a União Europeia é o alfa e o ómega do mundo, mesmo quando se arrisca a perder as eleições europeias para Le Pen. Outros repetem o mantra tranquilizante, o mundo está dividido entre os globalistas felizes e os labregos nacionalistas, escolha confortável pois permite a esta autointitulada “elite” proclamar-se moralmente superior e classificar todos os seus adversários num caixote do lixo.

Sentados no trono

O problema é mesmo, creio eu, o que estes globalistas felizes estão a fazer para nada fazer. Ficar sentado no trono não costuma ser boa opção quando há uma crise. Ora, Merkel sai da direção do seu partido, anunciando portanto a sua reforma, ela que era alcandorada na UE ao estatuto de líder incontestada; um antecessor que fez o mesmo, Schroeder, só durou 15 meses como primeiro-ministro depois de ter abandonado a liderança do partido, foi a eleições e perdeu. A última batalha da chanceler parece ser colocar um homem de confiança à frente da Comissão, enquanto o seu partido europeu se desagrega com a emergência do eixo populista de extrema-direita Salvini-Orbán-Le Pen. Macron, pelo seu lado, ajuda à festa criando um novo partido europeu para dividir os sociais-democratas e os liberais, e tenho para mim que um dia será lembrado como um dos homens que mais fizeram para levantar o peso político das direitas mais agressivas.

Assim, as políticas violentas contra os refugiados ou xenófobas contra comunidades nacionais vão crescendo com o beneplácito do centro, mesmo onde a extrema-direita não tem poder. Mas onde a UE se monstra mais incapaz é na política económica e social.

Um mito não alimenta famílias

Martin Hopner, cientista político da Universidade de Colónia, publicou recentemente um inventário dos erros da política europeia. O seu argumento é este: o pior de tudo é que a “Europa social” é um mito. Segundo Hopner, o mito recorre a quatro falsidades. A primeira, a da justiça que equilibra. Ora, a justiça europeia é instrumental, em particular contra os direitos do trabalho. Duas sentenças do Tribunal Europeu fazem jurisprudência, a do caso da Viking Line, uma empresa de ferrys entre a Finlândia e a Estónia, e da Laval, uma empresa letã na Suécia, que reclamavam contra greves para generalizar a todos os trabalhadores as mesmas condições salariais. O tribunal entendeu que o nivelamento das condições de trabalho era opcional para a empresa, o que implica que podem ser importados trabalhadores para um país e receberem salários mais baixos. Além da uberização, em que trabalhadores subordinados são mascarados de empresários individuais para que não haja responsabilidade do contratante, esta orientação do tribunal promove a queda dos salários e o ódio ao trabalhador imigrante.

A segunda falsidade é a da livre concorrência. Ela tem uma armadilha, a proibição da intervenção pública em empresas de infraestruturas, ou telecomunicações, banca, energia ou outras, pois o Estado é o único acionista impedido de capitalizar as suas empresas, pois não pode haver “ajudas de Estado” à própria empresa pública, e será forçado a privatizá-las. A norma da concorrência europeia é a lei da privatização.

A terceira é a do orçamento comunitário, cada vez mais limitado — e mais ainda com o ‘Brexit’ — e impedido de políticas sociais, o que reduz o discurso sobre cooperação europeia a uma charada. Finalmente, o quarto problema é a ilusão de que integração conduziria a melhor Estado social, quando na prática acentuou a heterogeneidade, reforçando mecanismos de monitorização orçamental que, precisamente, atingem os únicos instrumentos de Estado social que existem e que são nacionais.

A ressaca do mito

Se estas quatro falsidades descrevem a dessintonia entre o discurso oficial europeu, sempre inclusivo e universalista, e a realidade das políticas, sempre divisionistas e desigualitárias, há nisto uma consequência política. É que a sobrevivência de normas de Estado social eram a réstia de discurso social-democrata na Europa.

O sentimento de segurança das populações vive ancorado nesses direitos à saúde, educação e providência social. A sua degradação, com a austeridade, mas também com a pressão salarial e a precarização do trabalho, contribui para a desilusão europeia e para a fragmentação política. A doença do centro, o maior facto político da vida europeia, é o resultado do esvaziamento do mito. Ainda só começou.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 10 de novembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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