O microcrédito como uma forma de “subprime”

porRicardo Coelho

12 de janeiro 2012 - 3:18
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Por onde passa o turbilhão do microcrédito, fica um rastro de endividamento, acompanhado do uso da força pelos cobradores dos bancos e do suicídio de quem não consegue pagar as dívidas.

No mundo da ajuda ao desenvolvimento, poucas ideias são tão consensuais como a da microfinança. À constatação da existência de um ciclo de pobreza, na sua famosa formulação “os pobres são pobres porque são pobres”, vários economistas reagiram apontando as vantagens de um sistema de crédito para pobres. Dando crédito a quem nada tem, diz a narrativa do microcrédito, torna-se possível que pobres criem os seus negócios e assim deixem de ser pobres.

A ideia é atrativa para setores conservadores porque surge como uma alternativa ao Estado Social, visto como incentivador da preguiça, e porque dá um empurrão ao “empreendedorismo”, apresentado em tempos de crise como a solução para o desemprego. Alguns setores progressistas, por outro lado, aceitam com demasiada facilidade as promessas de erradicação da pobreza e de emancipação das mulheres que vêm associadas ao microcrédito. Nem o facto de hoje enfrentarmos ainda as consequências de uma crise financeira que teve a sua origem no mercado “subprime” de hipotecas é suficiente para que a generalidade das instituições de solidariedade social e organizações não governamentais de desenvolvimento percebam que dar crédito a quem pouco ou nada tem não é uma ideia brilhante.

O microcrédito surgiu nos anos 1970, no Bangladesh, como invenção de Mohammad Yunus1. Ao visitar uma aldeia, o economista apercebeu-se de duas realidades: eram as mulheres quem criava pequenos negócios criadores de riqueza mas também eram as mulheres quem estava mais à mercê de agiotas. Tendo elaborado uma lista de mulheres endividadas da aldeia, decidiu pagar do seu bolso as suas dívidas, que ascendiam a apenas 27 dólares. Daí veio a ideia de que seria possível libertar comunidades inteiras da pobreza emprestando dinheiro a taxas de juro baixas, de forma a potenciar o surgimento de pequenos negócios locais.

Nos anos seguintes, Yunus implementa várias experiências em que começa a emprestar dinheiro a pobres a baixas taxas de juro. Notando que a probabilidade de receber o dinheiro de volta era bastante superior com mulheres, Yunus começa a discriminar positivamente as mulheres. O economista havia descoberto a pólvora, pensava, já que descobriu ser possível emprestar dinheiro a pobres e recuperá-lo no fim do prazo acordado.

Mas o que tornava possível o reembolso do empréstimo não era o sucesso dos negócios criados com o dinheiro emprestado, que, na realidade, era baixo. Muito mais importante era a reputação junto da comunidade, sobretudo entre as mulheres, pelo que elas não hesitavam em pedir emprestado a outros membros da comunidade para amortizar o seu crédito. Daqui Yunus retirou outra ideia fulcral: criando círculos de solidariedade, cujos membros se ajudavam mutuamente no que toca às obrigações financeiras, a taxa de reembolso dos empréstimos subia imenso.

Com base nestas experiências, Yunus cria em 1983 o famoso banco Grameen. Funcionando como uma associação, o banco restringe o seu âmbito de atuação ao microcrédito cedido a pessoas com menos de meio hectare de terra ou bens com valor equivalente. Outras associações com a mesma finalidade surgem nesta época, todas sem fins lucrativos e apoiadas pelo Estado.

Um dos objetivos das associações de microcrédito era tornarem-se financeiramente independentes, não tendo de depender de subsídios do Estado para a sua atividade. Mas rapidamente se tornou claro que isso era impossível, dadas as baixas taxas de juro e a elevada taxa de créditos mal parados (bem mais elevada que os 6% proclamados por Yunus). Com o fim dos subsídios aquando da deriva neoliberal dos anos 1980, os subsídios às associações de microcrédito são cortados e estas são substituídas por empresas que exploram os/as pobres.

O Grameen acabou por se converter ao novo modelo de negócio no início deste século. Entretanto, as taxas de juro do microcrédito já haviam disparado, ascendendo a um mínimo de 20%. Rapidamente o Grameen se torna num banco muito lucrativo, replicando as práticas agiotas que Yunus havia criticado no passado mas que passou a aceitar quando a sua conta bancária inchou.

Apoiados por celebridades, fundações e agências de ajuda externa, economistas de todo o mundo correm para os países mais pobres do planeta para trazer o crédito fácil a quem nada tem. O ano de 2005 é decretado pela ONU o ano do microcrédito e no ano seguinte Yunus é galardoado com o Nobel da Paz. Dentro do consenso neoliberal, o microcrédito surge como a solução miraculosa para a pobreza, que permite resolver todos os problemas sociais e ainda distribuir lucros generosos para os bancos.

Mas uma observação mais cuidada da realidade do microcrédito mostra um retrato bem diferente do que os/as seus/suas proponentes fazem passar. Desde logo, porque a evidência empírica disponível mostra que a maioria dos créditos não se destinam a atividades produtivas. Na realidade, o uso mais comum do dinheiro emprestado pelos bancos “caridosos” são as despesas de consumo. Muitas pessoas pedem dinheiro para pagar funerais, casamentos ou outras despesas imediatas, destacando-se a alimentação. Muitas gastam-no em bens de consumo impingidos pela publicidade, como televisões ou automóveis, e muitas esbanjam-no em drogas ou álcool.

A minoria que investe o dinheiro em atividades produtivas tem de enfrentar as agruras de mercado sobrepovoado de pequenos negócios. Aqui se vê o erro básico do discurso que promove o empreendedorismo como solução para o desemprego: se todos/as tentamos vender coisas para ganhar a vida, quem vai comprar o que temos para vender? Na realidade, o mundo das microempresas, longe da imagem idílica da libertação do trabalho assalariado e das obrigações a ele associadas, é um mundo cheio de mulheres e homens que trabalham dia e noite para tentar evitar (ou adiar) a falência do seu negócio, à qual se segue a miséria de quem não tem trabalho e está afogado em dívidas.

Outro mito desmentido pelos dados disponíveis é o do empoderamento das mulheres. Ao contrário do prometido por Yunus, as mulheres que recebem o microcrédito não se libertam automaticamente da sociedade patriarcal em que vivem. Pelo contrário, o que mostra um estudo amplamente citado sobre o papel das mulheres no microcrédito, com base em dados do Bangladesh, é que as mulheres acabam por dar o dinheiro que pediram emprestado aos maridos, que frequentemente o esbanjam, para deixar depois às mulheres a tarefa de pagar o crédito2. Longe de garantir a emancipação das mulheres, o microcrédito acaba frequentemente por as envolver numa espiral de endividamento que sustenta o consumo dos seus maridos. Pior ainda, em muitos casos mulheres são vítimas de violência doméstica caso não garantam aos maridos um fluxo constante de dinheiro conseguido à custa do microcrédito.

Por onde passa o turbilhão do microcrédito, fica um rastro de endividamento, acompanhado do uso da força pelos cobradores dos bancos e do suicídio de quem não consegue pagar as dívidas. O Grameen não é exceção à regra, tendo também a sua reputação sido manchada pelo desvio de cem milhões de dólares de ajuda externa para as empresas do riquíssimo Yunus3. Isto não é solidariedade social ou sequer caridade, é o neoliberalismo puro disfarçado de economia social. Daí o interesse de bancos portugueses, como o Millennium e o BES, no negócio.

Retirar comunidades e famílias da pobreza não é uma tarefa simples mas é algo que está ao alcance dos estados que assumam as suas responsabilidades perante as suas populações. Apenas com políticas de empoderamento, de emprego, de apoio social e de instrução e formação se pode quebrar o ciclo da pobreza. Se as migalhas da caridade não resolvem o problema da pobreza, a microfinança consegue a proeza de agravar o problema. O que não é surpreendente, tendo em conta que o neoliberalismo local e de pequena escala não é de forma alguma menos agressivo que o neoliberalismo global e de larga escala.


1 Os dados que se seguem foram retirados de: Bateman, M. 2010. Why Doesn’t Microfinance Work? The Destructive Rise of Local Neoliberalism. Zed Books. Para um resumo dos argumentos contra o microcrédito dados no livro ver: Bateman, M. e Chang, H. 2009. “The Microfinance Illusion” [http://www.hajoonchang.net/downloads/pdf/Microfinance.pdf]

2 Goetz, A.M. e Rina S.G. 1996. "Who Takes the Credit? Gender, Power, and Control over Loan Use in Rural Credit Programs in Bangladesh." World Development, 24:1, pp. 45-63. [http://grove.ufl.edu/~gender/Readings/ReadingsW10/Whotakesthecredit.pdf]

3 Sobre os escândalos de corrupção que rodeiam o Nobel da Paz, ver: Patrick Bond, “A run on Grameen Bank’s integrity, as founder’s career ends in disgrace”, International Viewpoint 437. [http://www.internationalviewpoint.org/spip.php?article2174]

Ricardo Coelho
Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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