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O Memorando, os memorandistas e a sua estratégia de privatização da ADSE

Estas notas inventariam alguns factos sobre o SNS e sobre a ADSE e avaliam o efeito social, o custo e a eficiência de algumas alternativas.

Quando o responsável da direção de António José Seguro para a saúde, o médico Álvaro Beleza, criou uma pequena tempestade ao defender o fim da ADSE, só o governo das direitas acarinhou a proposta, com indisfarçado entusiasmo. No PS, ela provocou grandes incómodos e respostas desencontradas, desde argumentos de oportunismo eleitoral até a defesas da coerência do SNS. Ficou sem se saber a posição do PS, que não se poupou à suspeita de ter uma agenda secreta para o fim de um subsistema que protege 1,3 milhões de pessoas.

A questão foi logo aproveitada por alguns sectores da direita radical (João Carlos Espada, José Manuel Fernandes, Henrique Raposo, etc.), que apresentaram uma nova-velha sugestão: acabe-se antes com o SNS e substitua-se por um sistema de seguro privado de saúde.

Para responder a uns e a outros, estas notas inventariam alguns factos sobre o SNS e sobre a ADSE e avaliam o efeito social, o custo e a eficiência de algumas alternativas, em função de questões concretas. E argumentam que, quando se propõe uma política, é conveniente pensar qual é o seu objetivo, quem beneficia e quem a paga, qual é a relação de forças e como é que se pode ganhar.

1. De que é que eles estão a falar? O Memorando impõe o fim da ADSE em três anos

O PS, PSD e CDS pronunciaram-se sobre a “revolução Beleza” fingindo ignorar o que assinaram no Memorando com a Troika. O Memorando determinou a redução de 30% do gasto público com a ADSE em 2012, um novo corte de 20% em 2013 e assim sucessivamente até terminar o financiamento do Estado em 2016. Até lá, como vem acontecendo desde a chegada da troika, ou a cobertura do sistema é reduzida ou os preços para os beneficiários aumentam de tal modo que se torne indiferente para as pessoas que seja um seguro público (a ADSE atual) ou um seguro privado. O Memorando poderá assim conseguir o seu objetivo, que é ampliar o mercado dos seguros privados de saúde, ao mesmo tempo que são impostos cortes duros e sucessivos no financiamento e portanto na qualidade do SNS.

Álvaro Beleza e os seus apoiantes do PSD e CDS não esqueceram esta regra, porque assinaram o compromisso do Memorando. Querem simplesmente acelerá-la. A discussão que nos propõem não é portanto sobre a melhor utilização dos recursos públicos ou o melhor atendimento de quem precisa de cuidados médicos: é simplesmente sobre como aplicar mais depressa o seu Memorando com a troika.

2. O PS, o PSD e o CDS, e quem os apoia, sabem o que estão a fazer: um ataque salarial aos funcionários públicos

A descrição dos funcionários públicos como privilegiados tem pergaminhos. É o mote de toda a campanha ideológica contra o “Estado Social”. É e será sempre por aí que começa e que cresce a campanha ideológica da direita contra o Estado Social, ou seja, contra o direito de acesso a serviços públicos de qualidade, porque é com menos funcionários que se nivelaria a sociedade portuguesa pelos cuidados de misericórdia.

A ADSE foi criada em 1963, sob a ditadura, como uma das formas de compensar os funcionários públicos por terem salários mais baixos, para as mesmas qualificações e profissões, do que os trabalhadores do privado. Ao longo dos anos, o sistema mudou muito e foi alargado o apoio em saúde que é garantido aos seus beneficiários. Mas, a partir de 1979, os funcionários públicos passaram a descontar para financiar este sistema, tendo esse pagamento aumentado em 1981 e em 2006 (e agora aumentou também para os reformados), chegando atualmente aos 1,5%, já sobre o vencimento ilíquido e não sobre o líquido como até há pouco.

Ou seja, o trabalhador da função pública, como qualquer outro contribuinte, paga os seus impostos (logo financia o SNS, entre outras coisas), e acrescidamente paga um imposto especial de mais 1,5%, que lhe dá direito a um seguro complementar de saúde. Com esse seguro, tem acesso a consultas, exames e tratamentos médicos e cirúrgicos no sector privado (incluindo em especialidades que não existem no SNS ou são de difícil acesso por falta de especialistas ou de suficientes equipamentos, por exemplo, fisioterapia, dermatologia, urologia, imagiologia), pagando uma parte do preço e sendo reembolsado pelo resto. Como os restantes cidadãos, tem também acesso ao SNS pagando a taxa “moderadora” (cujo aumento empurra o funcionário público para os hospitais privados, porque já a urgência privada já lhe cobra uma taxa menor do que a do SNS). O funcionário público paga ainda todos os meses para ter uma tabela de comparticipações que é melhor do que a do SNS, por exemplo na compra de próteses ou outros aparelhos.

Para dar exemplos: o direito de acesso a um dentista a um preço protegido está no contrato da ADSE e portanto faz parte do salário atual do funcionário público; o direito a ter uma comparticipação razoável na compra de novas lentes para os óculos faz também parte do seu salário. Retirar-lhe esses direitos é diminuir-lhe o salário. A esquerda não aceita a redução dos salários e não aceita os sacrifícios impostos pelo Memorando.

3. A ADSE financia o sector privado?

A resposta é que sim. Financia o sector privado por duas razões diferentes, uma aceitável e outra criticável. No exemplo acima, financia o sector privado porque o SNS não tem cobertura eficiente de medicina dentária e os beneficiários da ADSE recorrem a consultórios privados, pagando uma parte do custo. O mesmo acontece noutras especialidades , em meios complementares de diagnóstico e tratamentos. Muitos deles são a única forma de acesso a cuidados de saúde de qualidade e com preço protegido.

Outros gastos seriam desnecessários, quando exista competência no SNS que deveria ser usada para tratar os problemas de saúde dos beneficiários da ADSE. É o caso dos internamentos e tratamentos hospitalares. E, convirá notar-se, a generalidade dos hospitais privados, hoje, dependem em grande margem, para a sua viabilidade financeira, dos acordos com os subsistemas públicos de saúde. É um sector público estrangulado a gerar mais-valias num sector privado, concorrencial. Se só tivesse um acordo com os hospitais do SNS, a ADSE poderia poupar até 100 milhões de euros (o Bloco de Esquerda tem o compromisso eleitoral de defender esta redução de custos com os hospitais privados e de defender também o direito à ADSE dos funcionários públicos). Há muito boas razões para anular estes acordos com os hospitais privados, porque este sistema é errado financeiramente e perverso estrategicamente, pois ajuda a financiar a contratação de alguns quadros que assim saem do SNS, retirando-lhe capacidade médica.

Mas, atenção, a utilização exclusiva dos hospitais públicos para o internamento de beneficiários da ADSE, deixando de ter protocolos com os privados, tem também um custo necessário e imediato: exige aumentar a capacidade de oferta de serviços e os consumos nesses hospitais públicos, o que faria disparar a despesa e a espera no SNS. Estamos a falar de 1,3 milhões de pessoas. Se se continuar a reduzir os serviços do SNS, como estão a fazer os Memorandistas, esqueçam esta hipótese, porque seria somente uma mentira para aumentar listas de espera, atravancar as urgências e infernizar os hospitais.

O fim da ADSE é por isso um erro. Diminuiria o salário dos trabalhadores que pagam este seguro. Entupiria o SNS, que não está preparado para este fluxo novo. E nivelaria o sistema por baixo.

A ADSE precisa de ser reformada, mas é para deixar de financiar os hospitais privados, não é para retirar cuidados de saúde aos funcionários públicos.

4. A ADSE será mais eficiente do que o SNS e poderia ser um modelo para a saúde para todos?

A direita ultraliberal baseia-se nesta conta: a ADSE custará, em 2013, 368,7 milhões de euros (455 em 2012) para 1,3 milhões de beneficiários, que pagam uma parte dos seus custos (pagam 232,7 milhões, ficando 136 milhões a cargo do Estado, porque os ministérios e serviços dão uma contribuição por cada trabalhador, aliás reduzida no OE 2013). Se estas contas estivessem certas, então o custo para o Estado por cada beneficiário seria de cerca de 105 euros por pessoa.

Ora, no mesmo ano, o OE vai transferir 7814 milhões para o SNS (dados do Orçamento de Estado), o que significa, ela por ela, 781 euros por cada pessoa (o SNS abrange toda a população). Ou seja, quase oito vezes mais do que o custo da ADSE por pessoa.

Outra conta possível é esta. A ADSE tem 197 funcionários (um única médica). O SNS tem 132 mil. Se dividíssemos o número de utentes pelo número de funcionários, então na ADSE haveria um funcionário (administrativo) para 6600 utentes e no SNS haveria um funcionário (médico, ou enfermeiro, ou administrativo ou outro técnico) para 75 utentes.

Nenhuma destas contas está certa e são até demagógicas e falsas.

Em primeiro lugar, o custo da ADSE não é só os 368,7 milhões indicados pelo seu orçamento (Ministério das Finanças). Estas contas deixaram de incluir o gasto em comparticipações de medicamentos, que no ano passado andou pelos 70 milhões. Portanto, é um pouco mais, pelo menos 20% acima. Mas, mesmo com isso, o argumento da eficiência comparada não sofre muito. Sejamos rigorosos, em qualquer caso.

Em segundo lugar, no SNS o número de funcionários refere-se ao cuidado prestado e à sua administração e na ADSE trata-se unicamente dos gabinetes administrativos, que não dão uma injeção. Os números não podem portanto ser comparados. Ora, os cuidados de saúde exigem técnicos de saúde, quer os nossos contabilistas queiram ou não queiram.

O problema é que a ADSE é um seguro complementar, cujos custos reais estão em parte escondidos no funcionamento do SNS (que os trabalhadores da função pública já pagam com os seus impostos). Sem a cobertura de cuidados garantida pelo SNS, o custo de um seguro de saúde disparava para valores exorbitantes e incomportáveis para o trabalhador de salário médio ou baixo. Para garantirem essa cobertura e a formação científica e técnica de gerações de profissionais, os trabalhadores do SNS têm de ser muitos e de corresponder a um gasto estrutural muito elevado, porque devem assegurar as especialidades fundamentais, tecnologias de referência e cuidados permanentes: a urgência do hospital central tem de funcionar todos os dias e todas as noites com pediatras, cirurgiões, obstetras e muitos outros, mesmo que os corredores não estejam cheios nesse dia ou nessa noite; tem de haver uma rede de medicina familiar e de saúde pública em todo o país, mesmo que não haja epidemia de gripe. Para que o número de funcionários administrativos da ADSE seja 197, é preciso que haja milhares de profissionais de saúde no SNS; para que o gasto seja à volta de 368,7+70=438,7 milhões de euros, é preciso que haja grandes custos pagos integralmente pelo SNS. O SNS é universal e geral, a ADSE não.

É então a ADSE eficiente? Depende. A ADSE não é eficiente no gasto com hospitais privados, porque gasta o que não devia, mas é eficiente em consultas que não existem no SNS, porque não há alternativa.

5. Se o gasto da ADSE for só de 438,7 milhões, com os utentes a pagarem mais de metade desse custo, porquê destruir o sistema?

Por uma única razão. O Memorando quer aumentar a área do negócio privado na saúde. A destruição da ADSE é um passo para a destruição do SNS, não é uma forma generosa de integrar os sistemas de saúde dando a melhor garantia para todos. Com os cortes atuais no SNS, o fim da ADSE teria dois efeitos imediatos: baixar os salários dos funcionários públicos e aumentar as listas de espera, conduzindo a piores cuidados e portanto a pressões suplementares para a saída das pessoas para o privado. Bom negócio. O entusiasmo da direita com a proposta do dirigente do PS diz muito, mesmo se dispensarmos medir cada solução pela cor dos olhos do seu proponente.

Vejamos então e simplesmente o que seria uma integração razoável da ADSE. A integração de todos os subsistemas seria sempre uma boa solução, se e só se desse as melhores garantias a todos. O que significaria um aumento grande do investimento no SNS, com mais profissionais, maior disponibilização de consultas, mais especialidades incluindo as que nunca existiram nos hospitais, mais tratamentos e melhor cobertura geográfica. Esse é o preço para integrar a ADSE no SNS.

Mas, se a esquerda não quer destruir o serviço de saúde ou baixar os salários dos trabalhadores (não quer, pois não?), então apoiar o jogo de Álvaro Beleza é um disparate. O PS escreveu no Memorando que iria cortar o SNS em cada ano que passa e não que o ia aumentar. O PSD e o CDS estão a preparar um corte suplementar de 4 mil milhões, que já se sabe que será na saúde, mais na educação e nas pensões. Há mesmo alguém na esquerda que queira juntar-se-lhes para propor o fim da ADSE?

6. Tem algum sentido propor que a ADSE acabe porque quem gasta não é quem paga e por isso usa mal os nossos impostos?

Até é difícil perceber este argumento. Como a Constituição não permite a consignação de impostos (só no caso de algumas taxas é que quem as cobra vai usar diretamente esse dinheiro), nos serviços públicos essenciais não há uma coincidência entre quem paga (ou assegura o pagamento, que é o uso dos impostos) e quem decide os gastos. É para isso que há orçamentos restritivos, disciplina e regras financeiras que têm de ser aplicadas com rigor.

Se se aceita a proposta de acabar com a ADSE porque os seus beneficiários usam os serviços a que têm acesso (e que em muitos casos pagam duas vezes), provocando assim gastos que podem sempre crescer, então porque é que o mesmo argumento não se estende ao SNS? Pois quem vai a uma urgência porque teve um acidente de viação provoca um gasto, mesmo que seja superior ao que pagou em impostos para o SNS. Neste caso como em muitos outros, quem gera o custo (o desgraçado que sofreu o acidente) não é quem o paga (é o SNS que paga tudo o que for preciso para salvar essa pessoa). E ele está a gastar os nossos impostos, ou não está? Está a usá-los mal?

O problema dos gastos na ADSE é igual em todos os serviços públicos de saúde: a procura, que é a necessidade, é que conduz os custos. A qualidade das regras (da ADSE como do SNS) deve ser controlar esses custos para garantir o melhor serviço a todos os que precisam. E, como foi escrito atrás, o pior que neste momento se pode fazer à qualidade do serviço universal de saúde seria acabar com a ADSE, fazendo uma nivelação por baixo e não uma convergência pela qualidade, porque assim só se garantiria que ficaria tudo pior para todos.

Percebe-se bem porque é que a Troika e o Memorando determinam o fim da ADSE e porque é que o PS, o PSD e o CDS querem apressar esse fim. E percebe–se bem porque é que toda esquerda que defende o SNS se lhes deve opor com firmeza, tanto porque não embarca na demagogia populista contra o funcionário público como porque quer um sistema que seja gerido para garantir a melhoria e não a degradação de serviços de saúde.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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