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O labirinto de Marta

Para a história não ficarão as tristes declarações de Marta Temido, mas, no mundo em que vivemos, isso não retira gravidade ao sucedido. No mínimo, deram ideias ao próximo governo da direita.

O assunto é incontornável. Na passada terça-feira, a capa do Público anunciava que os “médicos de família com utentes que fizeram aborto voluntário podem ser penalizados”. Nas páginas de dentro dava-se conta de que a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) propôs ao Ministério da Saúde que incluísse nos novos critérios para a avaliação das equipas nas Unidades de Saúde Familiar (modelo B), com influência nos salários da equipas profissionais: a ausência de interrupção voluntária da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis na mulher.

Quinze anos após a vitória do “Sim” no referendo do aborto, é óbvio que a notícia fez soar alarmes. Pela primeira vez desde a legalização, a interrupção voluntária da gravidez é retirada do âmbito dos direitos fundamentais para ser proposta como “indicador” penalizador das equipas dos cuidados de saúde primários.

Os avisos chegaram de vários lados. Bastava ler a notícia para ficar a conhecer o repúdio da Federação Nacional dos Médicos (FNAM) e o conteúdo da exposição feita à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, afirmando claramente que os indicadores da IVG e de Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST) podem provocar uma prática de desigualdade de género nos cuidados de saúde primários.

Ao longo do dia, a ideia foi rejeitada publicamente por várias pessoas, em particular por mulheres, indignadas com uma proposta que lembra outros tempos. A associação feminista UMAR emitiu um comunicado a denunciar a “perversidade” da motivação anunciada, lembrando que não há uma epidemia de gravidezes indesejadas que pudesse motivar qualquer extrapolação (ainda assim, errada) sobre o aborto, e que “o número de abortos tem vindo a diminuir, desde a aprovação da lei que em 2007 despenalizou o aborto até às 10 semanas”.

Infelizmente, a ministra Marta Temido não entendeu que houvesse um fundo de razão nessas preocupações e acabou por não se demarcar politicamente de uma proposta que poderia ter morrido “técnica”. Afirma Marta Temido que o aborto voluntário entrar na avaliação dos médicos de família “obviamente não penaliza nem utentes nem o médico”. E foi mais longe, afirmando que a "IVG é um direito, tal como fumar", mas que tem consequências para a saúde da mulher. É um comentário bastante infeliz que ofende gerações de mulheres que lutaram pelo direito ao aborto, nas quais ainda me incluo. Mais grave só a insistência no erro de aceitar um “indicador” da qualidade dos cuidados de saúde primários que teria como consequência óbvia dificultar o acesso das mulheres ao aborto.

A decisão das mulheres sobre o aborto tem as suas próprias razões. Não nos cabe julgar essas razões nem permitir que sejam tuteladas por um profissional de saúde ou qualquer outra pessoa. Foi por isso que lutámos. Considerar que o recurso ao aborto é resultado de uma falha de planeamento familiar, motivo de penalização para o seu médico de família, é um julgamento moral das mulheres e não política pública de saúde.

E o mesmo se diz sobre uma política de planeamento que se foca na saúde sexual e reprodutiva da mulher, mas nada diz sobre a do homem. Quando essa discriminação é tão gritante, já não se trata de prevenção e vigilância de saúde, mas sim de controlo e moralização da sexualidade da mulher, sobressaindo uma conceção patriarcal e heteronormativa da saúde e da prática sexual.

O Governo dirá que nunca teve intenção de limitar o acesso ao aborto, mas a verdade é que pretendeu tratá-lo como qualquer outro ato médico, e controlá-lo na medida em que se controlam pacientes com hipertensão para evitar AVCs. Atropelar direitos é destino traçado para quem pensa serviços públicos com modelos de gestão do setor privado, com objetivos métricos e centralidade na racionalidade de recursos. A igualdade de género fica pelo caminho.

A verdade é que, aqui chegados, só resta ao Governo recuar e manter-se fiel ao compromisso que o PS fez há quinze anos quando lutámos juntos pela legalização do aborto. Para a história não ficarão as tristes declarações de Marta Temido, mas, no mundo em que vivemos, isso não retira gravidade ao sucedido. No mínimo, deram ideias ao próximo governo da direita.

Artigo publicado no jornal “I” a 12 de maio de 2022

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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