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O inferno são os paraísos dos outros

Enquanto se legitimar a ideia de que o pagamento de impostos é um custo como qualquer outro, não há princípio de igualdade ou justiça que possa prevalecer.

Comprar um avião privado ou um iate de luxo sem pagar IVA. Ser secretário do Comércio de Trump e lucrar com negócios secretos com oligarcas próximos de Putin. Ter uma empresa de explosivos com sede nos Barbados para construir uma arma para o antigo ditador Saddam Hussein. Usar a coroa de Inglaterra e investir em empresas de crédito abutre. Tudo é possível quando se tem muito dinheiro e acesso a um paraíso fiscal.

Da Apple à Microsoft, da Uber à rainha de Inglaterra, passando pelo vocalista dos U2, Bono, conhecido pelas suas preocupações sociais, nunca se sabe quais serão os nomes envolvidos na próxima fuga de informações de um offshore. Por outro lado, sabemos sempre quem são os facilitadores: a começar pela reputada empresa Ernst & Young, ou pelo escritório de advogados em causa no caso dos Paradise Papers, a empresa Appleby.

A maior parte dos envolvidos argumenta que os esquemas montados através, por exemplo, da ilha de Man ou das ilhas Caimão são legais. É isso, aliás, que justifica os milhões pagos a consultores e advogados. É até possível afirmar que ambos os territórios pertencem ao Fórum Global sobre Transparência e Troca de Informações para efeitos Fiscais, no âmbito da OCDE, com uma avaliação de "muito cumpridores". Vale tudo para legitimar estes territórios que não têm outro propósito senão esconder o ilegal ou, o que é ainda mais perverso, transformar em legal o que, à partida, não é.

E bem pode vir o vice-presidente da Comissão Europeia clamar pelo "sentido de urgência" das alterações que é preciso fazer. Não passa de um exercício de pura hipocrisia. Basta lembrar que o homem que de facto ocupa a Presidência da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, foi antes ministro das Finanças, e primeiro-ministro do Luxemburgo. E que antes do Paradise Papers houve o LuxLeaks, que revelou como o Luxemburgo governado por Junker se opunha a qualquer reforma da lei fiscal a nível europeu, enquanto oferecia acordos fiscais secretos a multinacionais. Aliás, o Luxemburgo, como a Holanda, como Malta e outros continuam a ser centros de planeamento e fuga ao Fisco, não só pelas taxas que cobram, como pelos acordos que permitem a saída de dinheiro isento para fora da Europa. Há uma razão para a dona da EDP ter uma empresa no Luxemburgo. Essa razão é não pagar impostos sobre dividendos em Portugal.

Distinguir entre bons e maus offshores, mais ou menos transparentes, mais ou menos cooperantes, funciona como exercício de legitimação que oculta o verdadeiro problema: o planeamento fiscal e a opacidade, justificados pelo princípio da "competitividade fiscal". O mesmo princípio que justificou os "vistos gold" ou a reforma do IRC de 2014 (o regime de Participation Exemption, por exemplo) em Portugal.

Enquanto se legitimar a ideia de que o pagamento de impostos é um custo como qualquer outro, que as grandes empresas e fortunas têm o direito de "minimizar", recorrendo a todo o tipo de expedientes, não há princípio de igualdade ou justiça que possa prevalecer.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 7 de novembro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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