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O foguetório do défice

Nas gotas de chuva que entram em várias salas de aulas de escolas degradadas está o legado austeritário agora elogiado por Schäuble.

O mundo parece ter dado uma cambalhota quando ouvimos o ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble, falar bem do nosso país. Ele, que tantas vezes nos tem criticado, exigido mais e mais cortes, agourado vendavais sobre o nosso futuro, vem agora dizer que Centeno é o Ronaldo do Ecofin. Estranha situação! Tão mais estranha quando ainda há poucas semanas foi Ronaldo - desta feita mesmo o jogador de futebol - quem derrotou os alemães e os chutou para fora das competições europeias. Assomo súbito de fair play ou afirmação com água no bico? É a isso que tentarei responder.

No início da semana, a Comissão Europeia anunciou que Portugal irá deixar de estar sob a chantagem do procedimento por défice excessivo. A decisão baseia-se no facto de o défice de 2016 ter ficado abaixo dos 3% e de os défices previstos para os próximos exercícios orçamentais manterem essa exigência. É este o motivo de tal celebração, o acontecimento que originou as palavras de Schäuble e a satisfação do Ecofin. O foguetório nacional não se fez esperar e quase todos quiseram fazer parte da fotografia. Foi grande o corrupio de declarações ministeriais e até mesmo Assunção Cristas ou Passos Coelho, apesar de melindrados por não conseguirem maldizer a situação, se colocaram em bicos de pés para retirar os dividendos.

As falinhas mansas que Schäuble dirigiu a Mário Centeno querem fazer esquecer o que toda a gente sabe: os resultados da economia construíram-se com uma política de recuperação de rendimentos que enfrenta a austeridade de Bruxelas, patrocinada por Berlim. Os aumentos do salário mínimo nacional foram duramente criticados, o fim dos cortes nos salários da administração pública foi vilificado e a reposição dos feriados que haviam sido roubados foi pretexto para indignações várias das instituições europeias. Estes são apenas alguns exemplos, mas demonstram bem como a contestação à política seguida em Portugal foi dura e esteve sempre presente.

As palavras de Schäuble mascaram de elogio a normalização das regras europeias que contrariam cada uma das escolhas que melhorou a vida das pessoas. As regras europeias são absurdas, o que torna também absurda a celebração a que assistimos. Claro que é motivo de satisfação sempre que conseguimos libertar-nos um pouco das amarras dos tecnocratas. Mas isso não pode significar o esquecimento dos custos sociais que ainda estamos a pagar, nem tão-pouco a absolvição da falta de solidariedade europeia.

As regras impostas por Bruxelas dizem que quando há algum desequilíbrio nas contas públicas, independentemente da origem dessa situação, os cortes são o único caminho. E esses cortes atiram sempre aos serviços públicos de saúde, de educação, aos sistemas de pensões e segurança social, ao pagamento de salários ou ao investimento público. É por isso uma agenda clara: as regras europeias aproveitam-se de momentos de fragilidade dos Estados para atacar os serviços públicos. O objetivo é degradar primeiro para privatizar depois. Isso foi bem visível no período da troika, com uma redução drástica do orçamento da saúde e da educação. Continuou presente na chantagem do procedimento por défice excessivo e continuará no futuro a pesar sobre Portugal com as regras do euro impostas pelo Tratado Orçamental. Fossem bancos e as regras eram muito diferentes: veja-se que sempre existiu uma contabilização paralela do défice nacional que excluía o dinheiro despejado no sistema financeiro e nunca nenhum cêntimo foi negado por Bruxelas para salvar bancos privados com dinheiros públicos.

A mão da austeridade ainda pesa (e muito) sobre os nossos serviços públicos e esse é um dos défices da vergonha nacional. Nos hospitais portugueses, a marca do défice está bem visível na suborçamentação dos serviços e na crónica dívida apresentada. Nos centros de saúde, a marca de Bruxelas paga-se com o rateio dos exames ou com a falta de material. Nas gotas de chuva que entram em várias salas de aulas de escolas degradadas está o legado austeritário agora elogiado por Schäuble. Nos serviços públicos com falta de profissionais está o resultado da política de "saem dois, entra um" apadrinhada pela troika. Em suma, na incumprível política do défice zero está a negação do que falta em saúde e educação.

A ideia de que é possível ter uma política de esquerda que cumpra as regras europeias cai por terra com a realidade dos serviços públicos portugueses, famintos de investimento e cujos orçamentos ainda estão congelados com os cortes desde o período da troika. Esse é um dos desafios do próximo quadro orçamental: resgatar o Serviço Nacional de Saúde e a escola pública para as políticas de esquerda que se exigem. Dessa forma, mais uma vez, provaremos que as regras e as chantagens europeias podem ser vencidas com benefício para o nosso povo.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” em 25 de maio de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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