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O fascismo é uma minhoca

A luta contra os movimentos de extrema-direita tem que ser de todos, das minorias que eles atacam, sim, mas também daqueles a que querem tirar direitos laborais, dos outros a quem querem impor a censura, dos a quem querem dificultar o acesso à escola, à saúde. É uma luta de todos.

Desde o 25 de abril de 74, ou até antes, a extrema direita tem procurado um caminho para se afirmar, até agora sem sucesso. As versões terroristas do post-25 de abril falharam, a versão skin bélica e agressiva dos anos 80 também, mas parece que finalmente a extrema direita encontrou um caminho e tem penetrado como faca em manteiga no verão. Tal como o Estado Novo tinha feito, explorou traumas e fantasmas com sucesso. A mentira também.

Tinha à partida um campo fértil para crescer, alguns “retornados” que, aparentemente, se tinham integrado facilmente no regime democrático, ao ponto de a palavra ter desaparecido do vocabulário, revivem agora os seus traumas. O regime desaparecido em abril de 1974 também deixou as suas viúvas, que se foram integrando, sem grande gosto e com pouca voz, nos partidos da direita.

Uma das mais significativas manifestações dessa extrema direita na exploração de traumas, foi a “eleição” de Salazar como o maior português de sempre. Essa votação pode ser explicada, por um lado pelo reviver de traumas, por outro por descontentamento em relação ao regime democrático. Teria sido preciso ler esse descontentamento, o que não se fez.

Uma consulta às estatísticas mostra um país que desde 1974 mudou profundamente, para melhor. Índices como a mortalidade infantil, a escolarização, as infraestruturas nas casas e até o consumo de carne e leite (pedindo desculpa aos meus amigos vegetarianos), mostram um enorme progresso. E este progresso chegou à maioria, mas entender as estatísticas não é para todos. Olhando para a minha história pessoal como exemplo, foi uma guerra a que não fui, parentes que deixaram de estar exilados, livros que pude ler, filmes que pude ver, músicas que pude ouvir. Muitos tiveram sensíveis melhorias económicas, lembremos que o salário mínimo e de imediatamente a seguir ao 25 de abril, que também houve pensões para regimes não contributivos, outros talvez não tanto porque tinham padrões já razoáveis e também por a revolução coincidir com a primeira crise do petróleo e ter obrigado à integração de centenas de milhares de pessoas que viviam em África.

Não terá sido o melhor investimento, outros também não o foram, mas Portugal tem uma das melhores redes de autoestradas da Europa, também se construiu o CCB, os estádios, a expo o aeroporto de Beja e tantas outras obras sumptuárias. Construíram-se hospitais, mas estão longe de ser suficientes, construíram-se escolas, mas também se fecharam e outras e há as que funcionam sem um mínimo de condições. O interior despovoou-se de pessoas e serviços. Os salários continuam a ser dos mais baixos da Europa, sendo alguns preços dos mais altos. Progresso, mas.

As duas últimas décadas também não deixam boas recordações, economicamente são de estagnação. O progresso dos 25 anos anteriores parece ter parado, também são as estatísticas que o dizem. Para o cidadão comum isto significou que o progresso que até aí sentia parou. Portugal teria estagnado antes, mas com a crise de 2008 tentou-se a resolução de uma forma que protegeu os bancos e desprezou as pessoas, esta foi muitas vezes protagonizada, tal como a nível internacional, por uma social democracia que nem a face humana do capitalismo tentava ser.

Depois temos Sócrates e Passos Coelho, já tínhamos tido Durão Barroso e Santana Lopes. A ideia de que somos governados por chicos-espertos, ou incapazes, ou pior ainda, corruptos. Ver quem tinha sido primeiro ministro ser preso foi um choque, perceber a vida que levava em Paris, ou que tinha um modo de vida sem relação com os seus rendimentos ainda mais. E vê-lo substituído por alguém sem currículo, sem experiência que promete não subir impostos para logo a seguir determinar o mais brutal aumento de impostos continua a contribuir para o descrédito da “classe política”, mas também da democracia. Aqui os rendimentos não só não subiram como desceram. Fantasmas como a emigração voltaram, declarações arrogantes de pessoas desclassificadas levam á completa degradação da imagem do governo, mas também da democracia.

Passos e Sócrates são os novos pais de um Salazar incorrupto que morreu pobre e que seria um novo salvador da pátria. Claro que nada disto tem a menor relação com a realidade e os 48 anos de ditadura foram tão corruptos quanto podiam ser, mas era o ressuscitar de um fantasma. A corrupção foi o primeiro tema em que a extrema direita começou a ser bem-sucedida, mesmo se inicialmente fosse monopolizado por personagens apenas demagógicas.

Com Costa veio a “geringonça” e a promessa de recuperar rendimentos e diminuir as desigualdades. É verdade que se acabou aquela instabilidade de ao fim do mês o salário pago ir sempre encolhendo, é verdade que houve alguma recuperação de rendimentos. O salário mínimo cresceu significativamente, mas os salários acima deste estagnaram. Em muitos casos, como o brutal aumento de impostos nunca foi inteiramente revertido, há quem receba menos que há 10 anos, ou mesmo que há 15. Há uma classe média que continuou a ficar descontente. Em alguns sectores é pior, funcionários públicos com um aumento de 0,3% em 10 anos, enquanto havia um discurso triunfalista sobre a recuperação económica e se procurava o défice zero. Piora quando se fala de carreiras especiais da função pública, como os professores, a quem foi roubado tempo de serviço. No sector privado a legislação laboral de Passos ficou intocada, sectores como os camionistas ou os estivadores viram o governo a alinhar com os patrões.

Se alguém (e são muitos) acredita que está a ser explorado por minorias étnicas, por aqueles mais afetados pela pobreza, pelo desemprego e não pelo grande capital, pela fuga ao fisco. Se alguém acredita que o problema são os 180 euros de RSI e não os 180 mil mensais de alguns gestores, é porque o poder, nomeadamente o PS esteve com estes. O poder esteve sempre na proteção dos grandes interesses capitalistas, quer por deles depender, quer por aí procurar lugares. O PS aí não foi diferente do PSD. A tempestade que hoje se colhe, também fruto do vento da omissão da luta, ou sequer da referência aos mecanismos capitalistas.

E falta o racismo, como se passa da ilusão de Portugal não é racista, para um racismo aberto e desbragado. Depois da guerra (antes não era assim) a ditadura aderiu ao luso-tropicalismo, à ideia (mas só a ideia) de que se tratava de um estado multicontinental e multirracial. Sabemos que não era assim, mas a mitologia do regime promovia-o. O colonialismo português não seria um colonialismo, não haveria racismo. Esta ideia continuou no post 25 de abril que, incapaz de lidar com os traumas do império e do seu fim se refugiou na ideia do encontro de culturas. Uns eram escravizados, dominados, exterminados, mas isso era convenientemente esquecido.

Esta mitologia não resistiu aos primeiros embates. Pequenos conflitos, pequenas brutalidades policiais em vez de suscitarem a repulsa, vão alimentar o racismo. O pior é que as vozes contra o racismo se fazem ouvir, passam a ser tão detestados como Leonor Teles. Pequenos incidentes tornam-se grandes, até Bruno Candé ser assassinado, num crime para o qual a motivação racista óbvia foi desmentida e depois confirmada pela investigação. Os ciganos tornam-se no novo (ou de novo) no bode expiatório de todos os males da sociedade. Os lesados do fim do império eram um bom caldo de cultura para o crescimento do racismo. Afinal tinham sido os dominantes onde os africanos eram os dominados. Uma baixa classe média que se julga com direito a outro lugar na sociedade vai seguir essa expiação de pecados. Forças militares e policiais que sentem o poder a fugir, mas que também têm razões reais para descontentamento.

Surge o homem que diz o que os outros não têm coragem, que diz as verdades, que é contra o sistema, os privilégios dos políticos, que divide o país entre os portugueses de bem e os outros, que não quer que metade do país pague para a outra metade viver. Insultos, mentiras, perseguições tudo lhe serve para ganhar o palco mediático de que vive. Tenta copiar a relação de Salazar com a história, faz um comício em Guimarães, à sombra do castelo, ajoelha-se no túmulo de D. Afonso Henriques. Promete reconquistar Portugal e a sua antiga grandeza.

Terá passado muito tempo a ver filmes de Hitler e Mussolini, copia-lhes os gestos, o ritmo. Percorre o país em Mercedes topo de gama, rodeado de guarda costas, quer ser contra o sistema, mas quer dar a imagem de poder, também de que o perseguem. Tem à sua volta personagens pouco recomendáveis, negócios escuros. Entre eles ameaças de violência.

Depois de uma entrada difícil no parlamento o crescimento tem sido grande. A imprensa dá-lhe palco, a direita tradicional pensa que vai precisar dele, usá-lo e controlá-lo. Engana-se, está a ser usada por ele. Aliás já disse ao que vinha, marcha sobre Lisboa, 4ª República, são ameaças de golpe. Lembremos que não seria o primeiro a chegar ao poder por uma via democrática e a usar isso para acabar com a democracia.

Como se combate este fenómeno? Parece estar sempre a ganhar, ganha quando se fala nele, ganha quando não se fala. Parece ser essencial um cordão sanitário, que se perceba, como em alguns outros países da Europa que ali não há diálogo possível, nem acordos de governo, ou para governo. Isso depende da direita, depende também de um governo que nada fez, antes pelo contrário, para controlar a extrema direita nas policias e forças armadas.

Desmascarar também é importante, que se percebam as teias de interesses, que se percebam as mentiras, a violência encapotada, os programas escondidos. Os seus apoiantes parecem não acreditar nisso, apenas nas suas verdades, mas limitará o seu crescimento.

Sobretudo é preciso fazer desaparecer os argumentos que lhe dão força, com uma governação mais verdadeira, menos populista, sobretudo mais empenhada nos direitos das pessoas. Por estranho que pareça defendem as desigualdades, mas alimentam-se delas.

O desafio é grande, não para a 25 de janeiro, provavelmente veremos as lutas internas chegar a pontos extremos, a implosão não seria um cenário improvável, o que tem acontecido dentro do Chega parece adivinhá-lo. Porém, as raízes na sociedade vão persistir a luta contra estes movimentos tem que ser de todos, das minorias que eles atacam, sim, mas também daqueles a que querem tirar direitos laborais, dos outros a quem querem impor a censura, dos a quem querem dificultar o acesso à escola, à saúde. É uma luta de todos.

Sobre o/a autor(a)

Investigador de CIES/IUL
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