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O exemplo da Fontinha

Hoje à noite reúne a Assembleia Municipal do Porto. À porta, os membros do executivo e os deputados municipais encontrarão uma manifestação de gente solidária com o projecto da Fontinha e indignada com a forma como a autarquia destruiu, recorrendo à força policial, aquele projecto.

O Porto às avessas

A escola da Fontinha estava abandonada há anos. Com o passar do tempo, foi ficando destruída, passou a um espaço relegado, deixado à ruína por uma autarquia negligente. Certo dia, um grupo de pessoas, por sua iniciativa, começa a recuperar a escola, a limpar o recreio, a pintar os muros e as paredes, a organizar a biblioteca votada ao abandono, a reabilitar salas para que se desenvolvam os projectos que surgirem, a promover ali jantares e assembleias. Onde havia lixo e degradação nasce um espaço habitável. Onde havia abandono recupera-se a vida e o prazer de fazer coisas junto. Onde havia esquecimento passa a existir vontade de estar e dinamizar actividades diferentes. Onde havia desleixo passa a haver cuidado e um lugar restituído à comunidade.

Em qualquer país decente, a generosidade de quem tomou a iniciativa seria elogiada. Em qualquer autarquia decente, os poderes públicos olhariam com interesse para o projecto, procurando apoiar a organização da comunidade e assegurar recursos para que aquela semente ganhasse raízes.

No Porto, acontece tudo ao contrário. Depois do abandono, e quando finalmente alguma coisa nasce contra ele, a autarquia de Rui Rio acorda. Mas fá-lo com um único objectivo, destruir; e dirige-se aos activistas da es.col.a através da única linguagem que conhece, a violência e a repressão policial. Com a acção da autarquia na es.col.a da Fontinha, a porta fechada e as janelas emparedadas com tijolos e cimento voltaram a falar mais alto. Até quando?

Lições da es.col.a

O projecto da es.col.a, espaço colectivo autogestionado, ainda estava a dar os primeiros passos. Mas estava a dá-los bem e seguros. Sem exibições mediáticas nem passos maiores que as pernas, foi-se criando cumplicidade com os moradores, envolvendo pessoas disponíveis para assegurar actividades diferentes (do apoio escolar à hora do conto, do yoga às oficinas de clown, dos laboratórios de informática à recuperação do jardim e de uma horta), foram-se criando as bases de um funcionamento colectivo com a hierarquia diminuída ao mínimo e com esforço de consensualizar decisões.

Essa é provavelmente uma das lições mais importantes que retiro do exemplo da Fontinha. A es.col.a lembrou-nos que o futuro é hoje e por isso, se queremos mudar o mundo, é uma boa hipótese começar por fazer alguma coisa aqui e agora, onde estamos. Na Fontinha, aquele colectivo ocupante pôs os pés ao caminho e ensaiou a construção de um espaço fora da lógica de uma cidade entregue à especulação e à dualização social.

Não se trata, no meu ponto de vista particular, de abdicar de nenhum espaço nem de nenhuma modalidade de intervenção – muito menos deixar o Estado aos dominantes. Mas o que vi acontecer na es.col.a voltou a lembrar-me, entre outras coisas, a urgência da acção. Por uma razão simples: é quando agimos que somos confrontados com as discussões mais importantes. É quando agimos que o poder se questiona. É quando estamos num processo concreto que aprendemos a pensar e a fazer escolhas, porque elas são uma necessidade prática. Também por isso o exemplo da Fontinha merece não apenas curiosidade, mas apoio e solidariedade. Com a escassez de acção directa e concreta que existe, a es.col.a lembra-nos que é possível.

A luta transforma o mundo. E a nós?

Certamente nem tudo na es.col.a seria perfeito nem isento de discussão. Por exemplo, alguns de nós entendem que o consenso é uma necessidade nas decisões de um colectivo, outros acham que o dissenso e as decisões maioritárias fazem parte da aprendizagem da diferença e são úteis no funcionamento democrático dos grupos e das iniciativas. Alguns entendem que a delegação é essencialmente fonte de problemas, outros acreditam que, se ela for democrática e controlada, ajuda a encontrar soluções. Alguns acreditam que, para se fazer um espaço diferente, ele tem de ter princípios muito definidos desde o início, outros acham que mais vale correr o risco de ser mais contraditório e aberto no princípio, porque isso permite incluir mais gente e, com mais gente, temos a sorte de conversar sobre esses princípios e escolhas que defendemos com pessoas que nunca tinham pensado nisso.

O que vi na Fontinha foi, com as imperfeições de que somos feitos, uma vontade genuína de encontrar formas inclusivas de organização, de levar um projecto para a frente, de encontrar um equilíbrio entre os princípios de cada um e a vontade de trazer gente de fora, os vizinhos, e de pôr os seus valores e necessidades em diálogo com os dos habitantes da es.col.a.

Esse processo é outra lição que o processo da Fontinha dá a todos os que, como eu, às vezes se esquecem de tentar fazer as coisas de outra forma. Se o objectivo da luta é transformar o modo como nos relacionamos e como organizamos a nossa vida colectiva, não há nenhum motivo para não começarmos a fazê-lo no próprio processo da luta. Se não somos capazes de o fazer enquanto lutamos, seremos mesmo capazes de o fazer depois?

Um projecto contra o projecto, ou os álibis da Câmara

No dia do despejo, quem não conhecia o projecto passou a saber uma coisa: o que estava ali a acontecer tinha o apoio da população, dos “vizinhos” da es.col.a, como dizem os dinamizadores. E percebe-se porquê. Aquele projecto só trouxe benefícios àquela gente: o recreio devolvido às crianças, a possibilidade de participar em actividades não comerciais, a dinamização de cultura e debate, a disponibilidade de professores para o apoio escolar e de tanta gente com coisas para partilhar. Os responsáveis pelo projecto criaram laços entre os moradores, libertaram um espaço, devolveram-no ao domínio público.

Isolada, a Câmara tentou responder com a existência de “um outro projecto pensado para aquele espaço”, fazendo sair nos jornais notícias que desvendavam alguns dos seus contornos. Já haveria projecto arquitectónico para reabilitar o edifício, dois professores destacados pelo Direcção Regional da Educação a trabalhar em conjunto com a Universidade Católica para pôr de pé uma escola de segunda oportunidade, com o envolvimento da segurança social e do Instituto de Emprego. Joaquim Azevedo, da Católica, confirmou ao Público a informação. Mesmo estando este projecto bloqueado pela autarquia desde Janeiro, percebe-se a intenção da Câmara: virar um projecto contra o outro para legitimar a sua acção policial. Mas por mais que tente baralhar o debate, o executivo não deve ser poupado a responder ao essencial.

Três perguntas e três certezas

Primeira pergunta: se existe esse projecto, por que razão a Câmara nunca o divulgou à população? Segunda pergunta: qual vai ser o papel daquela comunidade na definição das suas necessidades? Não devem ser as pessoas da Fontinha a decidir aquilo de que precisam e, a partir daí, a determinar o que se faz com aquele equipamento? Terceira pergunta: se a intenção da Câmara é apoiar um projecto de intervenção sócio-educativa, e não destruir o processo em curso na es.col.a, por que razão não instala esse outro projecto em qualquer uma das outras escolas abandonadas do centro do Porto (e há tantas, como sabemos)?

A forma como a autarquia e a forma como cada um de nós responde a estas perguntas decide como nos posicionamos em relação a este caso concreto. É que quem tem alguma sensibilidade para projectos sociais e educativos sabe que nenhum projecto se impõe a uma comunidade, negoceia-se com ela. Sabe que um bom projecto nunca poderá nascer da destruição de outro bom projecto. Sabe que nunca um bom projecto, por melhor que fosse, nasce de uma intervenção policial contra quem estava a servir a população. É por isso que, independentemente de qualquer outro projecto, o que está em causa é defender o exemplo da Fontinha – e o processo que lá se desenvolvia.

Fazer cidade contra o abandono

A Fontinha, além de um processo para discutirmos e aprendermos, põe mais uma vez em evidência uma das questões políticas mais importantes da cidade, a do seu esvaziamento e degradação.

O Porto tem perdido milhares de habitantes nos últimos anos. Também aqui se sente o efeito donut: um centro esvaziado e uma periferia em crescimento. A Câmara não tem incentivado a reabilitação e tem protegido a especulação. A Sociedade de Reabilitação Urbana, por si só, recuperou apenas um edifício, na Praça das Flores. A autarquia vende património habitacional na ordem de 2 milhões por ano. Hoje, grande parte dos prédios devolutos não são propriedade de “senhorios pobres”, mas de imobiliárias à espera da próxima bolha especulativa, protegidas pela política de Rui Rio.

Ao mesmo tempo, o Porto tem visto os seus espaços e equipamentos públicos serem-lhe retirados. O Rivoli foi entregue a um empresário privado e deixou de ser um teatro municipal com um projecto virado para a cidade. A Câmara evita recuperar o Bolhão e quis entregá-lo a uma empresa holandesa para o transformar num centro comercial. O mercado do Bom Sucesso foi entregue a uma empresa privada e tem um projecto que vai destruir a sua função e coerência arquitectónica. Nos jardins do Palácio prepara-se a construção de um centro de congressos gerido pela Associação Empresarial, subtraindo espaço público, e foi rejeitado, pela direita e pelo PS, um referendo para que a cidade se pronunciasse. Em tantos casos, o património da cidade está ao abandono e às populações mais pobres retira-se, na prática, o acesso a equipamentos sociais. Também desse ponto de vista, o exemplo da Fontinha é inspirador porque contraria a lógica dominante na cidade. E acontece numa zona tão central quanto escondida e esquecida.

Apropriarmo-nos colectivamente do espaço público: aqui está uma necessidade para agora. Na Fontinha, não se tratou apenas de exercer a democracia, mas propriamente de fazer cidade.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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