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O Estatuto da Pequena Agricultura proposto pelo Governo falha objetivo

O projeto governamental é demasiadamente restritivo e, a ser aprovado, só abrangerá quem obtiver a maioria dos seus rendimentos da agricultura.

Tornou-se por demais evidente a urgência de encontrarmos políticas adequadas à pequena e muito pequena agricultura familiar, tão importante para as economias locais, mas também para gerir os territórios, mantendo-os cuidados com respeito pelo ambiente e assumindo-se como verdadeira guardiã do valioso património genético que constituem as variedades regionais e raças autóctones. Este tipo de agricultura é reconhecida internacionalmente como a que melhor e mais contribui para a soberania alimentar.

Praticamente 3/4 das explorações são muito pequenas, gerando menos de 8 mil euros de Valor de Produção Padrão Total1. Em 2016, a população agrícola familiar era constituída por 627,8 mil indivíduos, o que representa 6,1% da população residente.

A tendência para a pluriatividade e diversidade na origem dos rendimentos tem vindo a aumentar. De acordo com dados do Recenseamento Agrícola do INE, o peso das explorações agrícolas com rendimentos “principalmente de origem exterior à exploração” tem vindo a aumentar e esta tendência deverá manter-se. Em 1989, eram 59,8%, em 1999 eram 67,8% e em 2009 aumentou para 82% o universo de agricultores cujo rendimento principal já não vem da produção agrícola.

Está agora em consulta pública, até 31 de janeiro, o Estatuto da Pequena Agricultura Familiar (EPAF). Trata-se de um projeto de Decreto Lei que visa criar uma espécie de Lei de Bases da Pequena Agricultura Familiar produzido por uma Comissão Interministerial para a Pequena Agricultura Familiar, criada através do Despacho n.º 7423/2017, de 4 de agosto, “visando responder aos principais desafios e reforçar as potencialidades desta importante modalidade de organização de atividades produtivas, de gestão do ambiente e de suporte da vida social nos espaços rurais do nosso país”.

Há que louvar esta iniciativa governamental, mas há que participar no debate de modo a garantir que este Estatuto responda efetivamente aos problemas sentidos pela pequena agricultura e que não acabe a favorecer sempre os mesmos, em vez daqueles que precisam mesmo, os pequenos e muito pequenos.

Considero que o Estatuto da Pequena Agricultura Familiar deve ser desenhado de forma a incluir todas as explorações agrícolas que apresentem uma Dimensão Económica abaixo de 25 mil euros de Valor de Produção Padrão Total, independentemente da origem dos rendimentos, do valor da declaração do IRS dos respetivos titulares e da residência principal do responsável pela exploração. O projeto governamental é demasiadamente restritivo e, a ser aprovado, só abrangerá quem obtiver a maioria dos seus rendimentos da agricultura. Ficarão de fora cerca de 82% destas explorações, grande parte dos que recebem pensões, por exemplo, ficará de fora.

A grande maioria dos responsáveis pelas pequenas e muito pequenas explorações não conseguem viver exclusivamente da agricultura, nem sequer conseguem obter nesta atividade a maior parte dos seus rendimentos.

Este projeto de Estatuto exclui também todas as explorações agrícolas que não tenham cadastro. Reconheço a importância de se fazer o Cadastro da propriedade rústica, mas não pode ser à custa de maiores penalizações sobre quem tem sido sistematicamente penalizado e excluído. O Cadastro deverá ser incentivado por outras formas e não pela exclusão dos produtores deste Estatuto, que a ser concretizado, poderá vir a ser da maior importância para a valorização dos territórios do interior e a prevenção dos incêndios florestais e rurais que se impõe.

Defendo ainda que todos os direitos previstos no Estatuto devem ser regulamentados no prazo de seis meses a contar da data de entrada em vigor do respetivo Decreto-lei de forma a garantir que todos os objetivos nele enunciados serão efetivamente assegurados.

Defendo, assim, um EPAF o mais abrangente possível que contribua para a valorização da agricultura familiar e para a fixação de pessoas nos territórios do interior, para a boa gestão do território e para a prevenção dos incêndios. Espero que o Governo “corrija o tiro” e adote um caminho naquele sentido.


1 Valor de produção padrão (VPP): é o valor monetário médio da produção agrícola numa dada região, obtido a partir dos preços de venda à porta da exploração. É expresso em euros por hectare ou cabeça de gado, conforme o sistema de produção, e corresponde à valorização mais frequente que as diferentes produções agrícolas têm em determinada região. Valor de produção total (VPT) ou valor de produção padrão total (VPPT) da exploração: corresponde à soma dos diferentes VPP obtidos para cada atividade, multiplicando os VPP pelo número de unidades (de área ou de efetivo) existentes dessa atividade na exploração.

Sobre o/a autor(a)

Engenheira agrícola, presidente da Cooperativa Três Serras de Lafões. Autarca na freguesia de Campolide (Lisboa). Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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