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O Discurso da Democraticidade

Que limitada democracia esta em que em nome da liberdade se procura a toda a força que o Estado abdique de instrumentos centrais de promoção da igualdade social.

O actor político encontra sempre na legitimação pública dos seus actos ou propostas um dos seus principais desafios. Trocado por miúdos, e tal como é sobejamente conhecido, uma coisa são os fundamentos ou intenções anunciadas de uma política e outra coisa são os verdadeiros motivos que a norteiam ou justificam. Daí o tão grande esforço empreendido por quem as implementa ou defende, procurando legitimações que possam ser bem acolhidas pela opinião pública.

E é em medidas com efeitos sociais duvidosos que parece existir um maior esforço de criatividade legitimadora por parte dos actores políticos. Marisa Matias chamava a atenção neste espaço há uns dias atrás para o discurso dos abusos, tão frequentemente usado para reduzir prestações sociais, por exemplo. Na mesma linha, acrescentaríamos o discurso da democraticidade, utilizado para fazer recuar o Estado em determinados domínios sociais.

A possibilidade agora anunciada dos funcionários públicos poderem rescindir livremente da ADSE é um bom exemplo de como, através da capa da democraticidade, se procura nitidamente um recuo neste sub-sistema de saúde. Se a medida procura legitimar-se com o discurso de “deixar as pessoas escolher”, é certo que serão os funcionários públicos melhor remunerados que ponderarão a saída. Ou seja, está-se a abrir mão dos escalões mais preciosos para o financiamento do subsistema ao mesmo tempo que se anunciam novos cortes nas comparticipações. Um nítido convite ao abandono colectivo da ADSE, preparando caminho para a insustentabilidade e inutilidade que facilitarão no futuro a sua extinção.

Mas o discurso da democraticidade é também bastante usado noutros sectores. Veja-se o que acontece a nível da educação quando se defende a complementaridade dos sistemas público e privado de ensino, procurando uma comparticipação pública deste último. O argumento utilizado é sempre o da “liberdade de escolha do cidadão”, não sendo necessário ser-se grande adivinho para se perceber que as consequências últimas rondam sempre o recuo da rede estatal. Veja-se igualmente a possibilidade entreaberta dos sistemas privados de segurança social. Sob a capa da democraticidade, possibilita-se que o sistema público perca os cidadãos com escalões de rendimento mais elevados. Por último, atente-se ao que se passa com a defesa de comparticipações públicas e benefícios fiscais para a utilização dos sistemas privados de saúde, retirando-se assim precioso financiamento da rede pública.

Não deixa de ser curioso constatar que a democraticidade destas políticas públicas de base liberal é inversamente proporcional à componente de solidariedade e redistributiva das mesmas. Fomenta-se a utilização de sistemas privados, prescindindo-se quase sem pestanejar dos mecanismos de solidariedade e de redistribuição proporcionados pelos sistemas públicos. A meu ver, e sendo ideologicamente parcial, que limitada democracia esta em que em nome da liberdade se procura a toda a força que o Estado abdique de instrumentos centrais de promoção da igualdade social.

Sobre o/a autor(a)

Politólogo, autor do blogue Ativismo de Sofá
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