Do Coliseu do Porto quero recordar-me do futuro que vai ter. Não admito regressos ao passado como aquele que quase o colocou nas mãos da IURD pela prepotência do comprador e pela avidez de quem vendia. Nesse momento, como tantos outros portuenses, saí à rua na maior manifestação civil pelo direito à cultura a que pude assistir em Portugal. A 4 de agosto de 1995, dia anterior à data marcada para a estreia do primeiro culto na nova igreja matriz da instituição, ouvia-se "O Coliseu é nosso!" no eterno sobe e baixo da Rua Passos Manuel. Milhares de pessoas de todos os quadrante e áreas, gente sólida e junta como o edifício que, fechado à nossa frente, nunca deixaríamos que abrisse portas uma vez que fosse para se encontrar perdido para sempre. Uma manifestação espontânea de civis com todas as patentes, plena de resultados. Que bela guerra civil.
Agora, quando o Coliseu padece de problemas financeiros que inspiram cuidados, os seus três principais accionistas (Secretaria de Estado da Cultura, Câmara do Porto e Área Metropolitana do Porto) reúnem - em Lisboa - tentando encontrar uma solução. No fim da reunião, o "gabinete estadual" sai das quatro paredes centralistas para assegurar em comunicado que irá "promover os esforços necessários à salvaguarda" do espaço. Ou seja, ainda não existe qualquer solução. Perante o progressivo desinvestimento deste e de outros governos na cultura e, como dizia uma eminente procuradora do Ministério Público, "adoro arguidos que confessam".
Se foi no Coliseu que vi espectáculos que jamais veria, entramos então no campo do que é objectivo: não há outra sala, por exemplo, onde se possam ver espectáculos de Ópera a norte de Lisboa. Também por isso o Ministério da Cultura (era um Ministério, lembram-se?) acordou, desde 2000, numa contribuição de 250 mil euros/ano, pela contrapartida de apresentação de duas óperas de produção integral. Nenhuma fortuna para a dimensão e importância da sala mas suficiente para permitir a manutenção de uma estrutura financeira leve a rondar os 150/200 mil euros por ano. Essa verba central foi sendo sucessivamente diminuída até aos actuais 100 mil euros, para igual produção. Quando o relatório e contas da "Associação Amigos do Coliseu" aponta, num passivo global de 400 mil euros, a um resultado negativo de 130 mil euros em 2013 face ao ano anterior, percebe-se que o problema é estrutural e não se agravou só por um mero ano mau. Não acredito que se possa sequer equacionar a Casa da Música como uma concorrente directa do Coliseu, aferindo a desgraça deste último pelos preços de aluguer das salas. Da mesma forma que não comparo a Sala 2 da Casa da Música ao Salão Ático do Coliseu. Cada um dos espaços tem os seus próprios públicos, por vezes diferenciados ou confluentes, sendo perfeitamente natural que perante a crise económica os agentes culturais procurem salas mais pequenas ou polivalentes. A questão central - independentemente de repensar parte do modelo de gestão e algumas soluções alternativas - é o equilíbrio financeiro sustentável que, neste momento, só pode ser conseguido com maior contribuição do Estado central. Aquela que unilateralmente deixaram de ter e que, antes que seja o coveiro de algo que fez renascer por paixão, José António Barros não aceita.
O Coliseu do Porto não é só um campo de afectos subjectivos. É verdade que foi no Coliseu que assisti a alguns dos mais marcantes concertos e que vivi, em palco, alguns dos mais emotivos momentos do meu percurso enquanto músico. Foi lá que vi o "ET" de Steven Spielberg por duas vezes, em miúdo. E que admirei o mal-amado "Dune" de David Lynch, mais graúdo. Extra-terrestre? Não, extraordinário. Pisar a madeira do chão da plateia, passear pelo balcão procurando os lugares laterais ou centrais consoante a qualidade do som, experimentar as galerias ou galinheiros, hesitante, em visitas extremas. Entrar, entrar no Coliseu. Mas, objectivamente, a perspectiva do fim do Coliseu não decorre do momento alegórico em que Claudia Schiffer incendiou a sala no Portugal Fashion/96. O verdadeiro incêndio cultural é que continuam a administrar à distância as nossas vontades e desejos, as nossas competências e equipamentos. Depois parece que precisamos de uma esmola desse "Estado à distância". Enganam-se, o dinheiro é nosso.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 17 de junho de 2014