O compromisso necessário para retirar o país do regime de protetorado

porCatarina Martins

23 de dezembro 2017 - 16:57
PARTILHAR

A reestruturação da dívida, a nacionalização de empresas estratégicas e a política orçamental contra-cíclica de que o país precisa exigem uma postura em contracorrente com as orientações das instituições europeias.

Quando, em 1985, Mário Soares assinou o Tratado de adesão à Comunidade Económica Europeia, a ideia de que o processo de integração europeia traria a Portugal uma convergência com os países mais evoluídos, no plano económico e no plano da qualidade de vida, para um país com uma democracia jovem, marcada pelo atraso provocado por uma ditadura de meio século, o momento era de esperança e a Europa, era vista como uma promessa de prosperidade.

A integração europeia confundiu-se com a democracia e as conquistas de uma e outra confundem-se também. Uma confusão alimentada pelos poderes político e económico, que recusaram sempre o debate europeu e que impuseram como política única do país o consenso em torno da integração com um propositado enviesamento. Hoje são popularmente reconhecidos padrões europeus na melhoria das condições de vida e no desenvolvimento, e menos o fruto dos avanços na saúde pública ou qualificação da população que o SNS, a Escola Pública ou Habitação Pública permitiram. Os resultados das grandes obras da democracia chegaram quando a agenda política e mediática era já dominada pela integração europeia. Inversamente, pouco se fala da capacidade produtiva que o País perdeu com a integração europeia. Ao longo dos anos, em Portugal foi hegemónico o discurso em que erros económicos ficam imputados apenas à política nacional e os avanços à integração europeia.

O que aconteceu à promessa europeia

Trinta e dois anos depois, é útil olhar para o que foi o percurso de integração na Europa e para o que aconteceu à promessa europeia. O processo de construção europeia avançou muito, e de forma muito desigual. As políticas orçamentais nacionais foram fortemente restringidas, mas o orçamento Europeu continua miserável. A União Europeia tornou-se também uma União monetária mas os mecanismos de compensação de desequilíbrios entre os membros são inexistentes. A União Europeia liberalizou os fluxos de capitais mas não estabeleceu quaisquer mínimos tributários. Produziram-se milhares de regulamentos sobre produtos e mercados e nenhum padrão europeu de proteção do trabalho e direitos sociais

A União Europeia construiu um mercado único, mas não construiu um sistema de direitos comuns e muito menos um sistema de solidariedade económica

É por isso que vários autores se referem à integração europeia como um exemplo de regulação assimétrica. A União Europeia construiu um mercado único, mas não construiu um sistema de direitos comuns e muito menos um sistema de solidariedade económica. Na realidade, o processo de construção europeia foi muito mais um processo de eliminação ou limitação de instrumentos de política nacional do que a criação de instrumentos europeus que os substituíssem.

 

Este processo, a que vários autores chamam hoje de integração negativa, teve teóricos anteriores aos próprios fundadores da União Europeia. Em 1944, Friedrich Hayek, um dos principais intelectuais da direita do Século XX, propunha a forma da federação como o instrumentos mais eficaz para a prossecução do projecto liberal, atribuindo-lhe explicitamente a virtude de permitir contornar o obstáculo das democracias nacionais.

A ausência de harmonização europeia na esfera do trabalho ou da fiscalidade favoreceu uma corrida para o fundo nos salários e na tributação dos rendimentos do capital

A União Europeia cumpriu essa tarefa com assinalável sucesso. A regulação assimétrica de diferentes esferas da política económica e social não deve ser entendida como um falhanço do processo de construção europeia. A ausência de harmonização europeia na esfera do trabalho ou da fiscalidade favoreceu uma corrida para o fundo nos salários e na tributação dos rendimentos do capital.

 

Esse caminho aprofunda-se, sobretudo após o Euro, uma vez que perante os crescentes desequilíbrios nas balanças correntes, os salários se tornam a única variável de ajustamento, como se vê pela permanente insistência das instituições europeias na flexibilização do mercado de trabalho. Um enviesamento deflacionista cujas consequências nas economias periféricas menos competitivas foram desastrosas.

desde o início do processo de convergência nominal (1996-2016), o nosso endividamento externo aumentou mais de 8 vezes

Vejamos os dados para Portugal, tendo o Euro como momento crucial: A taxa média de crescimento anual real de Portugal antes do Euro (1976-99) foi de 3,72 %. A seguir ao Euro (2000-16) foi de 0,48 %. Em 2000, a taxa de desemprego era de 3,9 % (8,6 % nos jovens). Em 2016, foi de 11,1 % (28% nos jovens).

Mas mais significativo ainda: desde o início do processo de convergência nominal (1996-2016), a posição de investimento internacional de Portugal, indicador que mede o nosso endividamento externo, degradou-se de 12,9% para 109,4 % do PIB, ou seja, o nosso endividamento externo aumentou mais de 8 vezes.

Uma Europa de vencedores e vencidos, sem qualquer desígnio comum

Se olharmos seriamente para os números, compreendemos que a União Europeia não só não nos trouxe a prosperidade sonhada, antes pelo contrário. Mas observamos ainda que a União Europeia não é nem Europeia, nem uma União. Não existe um destino ou um propósito comum. A integração europeia realmente existente limitou-se a mexer nas relações entre Estados-membros, desequilibrando-as a favor das economias excedentárias. O resultado está à vista. Uma Europa de vencedores e vencidos, sem qualquer desígnio comum. É por isso que é absurdo falar de regresso a uma Europa de Estados-nação. Não temos nem nunca tivemos outra coisa. E ninguém o sabe melhor que a Alemanha, cujo projecto para a União Europeia é um instrumento do mais puro e bem-sucedido nacionalismo económico.

Após a crise financeira, as fragilidades estruturais do Euro e a incompetência na política económica de curto prazo degeneraram em autoritarismo. Se a União Europeia nunca tinha primado pela sua democraticidade (basta ver a lástima que é o quadro de poderes do Parlamento Europeu, único órgão eleito pelos cidadãos), o período que se seguiu à crise financeira caraterizou-se por um conjunto crescente de ataques à democracia onde ela efetivamente existe na Europa: nos Estados-membros.

Em 2015, Freitas do Amaral escreveu numa mensagem para uma iniciativa de solidariedade com a Grécia que a “União Europeia passou a ser uma ditadura sobre democracias”. O diagnóstico é brutal como foi o processo. O ultimato à Grécia foi o momento crítico desse processo, mas a generalização da arbitrariedade, das ameaças e das chantagens chegou a todos os Estados-membros que não tinham peso económico e político para rejeitar a permanente ingerência. A ideia de que esta ingerência visava o cumprimento multilateral de regras aceites por todos e iguais para todos é um fraude absoluta, como atestam a contínua impunidade de França e Alemanha, perante os seus próprios incumprimentos.

O autoritarismo e a arbitrariedade são causas adicionais da crise identitária da Europa

O autoritarismo e a arbitrariedade são causas adicionais da crise identitária da Europa. Não existe cidadania europeia, porque os europeus não são iguais nem são cidadãos, a não ser nos seus países. Aliás, quando a democraticidade das instituições europeias é defendida, é-o invariavelmente com base na ideia de que as regras existentes foram aceites pelos europeus. Não é assim.

E ainda que sejamos generosos e aceitemos que isso é assim num país como o nosso, com indicadores de grande aprovação popular da integração europeia, mas que não referendou um único passo da sua integração europeia, sejamos claros: toda a defesa da legitimidade da União Europeia reside afinal única e exclusivamente nos Estados-membros e, uma vez constituída, a União Europeia é um projecto blindado.

uma União em que parte dos membros tem excedentes da balança corrente sistemáticos e outra parte tem défices sistemáticos, é uma União que caminha para a desagregação

Olhemos, por exemplo, para o problema crucial da integração europeia: os desequilíbrios macroeconómicos persistentes. Penso que será pacífico que uma União em que parte dos membros tem excedentes da balança corrente sistemáticos e outra parte tem défices sistemáticos, é uma União que caminha para a desagregação.

Países deficitários como Portugal enfrentam um dilema insolúvel. Ou comprimem os salários de forma a conter as importações e equilibrar as contas externas, o que se repercutirá num abrandamento da economia e consequente aumento, ou pelo menos não-diminuição, da dívida pública, ou se concentram no crescimento e criação de emprego para reduzir o endividamento público perdendo o controlo das contas externas. Mesmo que uma reestruturação multilateral das dívidas dos Estados-membros fosse aceite, e nada o indica, antes pelo contrário, esta apenas colocaria os contadores a zero.

As soluções que permitiriam compensar os desequilíbrios internos da União, e são muitas e muito criativas as hipóteses disponíveis, têm uma coisa em comum: todas pressupõem transferências sistemáticas de rendimento das regiões excedentárias para as mais atrasadas. A União que é União é uma União de transferências como são a federação alemã ou os Estados Unidos da América. Quem quer uma União Europeia ou quer isto ou está equivocado.

Processos como o Brexit, o crescimento da extrema-direita um pouco por toda a Europa são produto de uma UE sem mecanismos de solidariedade ou coesão social

Agora olhemos para o panorama político por essa Europa afora. Alguém acredita que uma refundação da União Europeia desta magnitude, que exige alterações profundas aos tratados e, portanto, um consenso Europeu, tem alguma viabilidade? Estão a ver a Alemanha a aceitar que os seus excedentes comerciais sejam reciclados para efeitos de políticas orçamentais solidárias? Se é isto que é necessário para salvar a União Europeia, e nada menos servirá, é difícil acreditar na salvação desse projeto.

Processos como o Brexit, o crescimento da extrema-direita um pouco por toda a Europa e dos governos protofascistas a leste, não são acasos. São produto de uma União Europeia sem mecanismos de solidariedade ou coesão social, sem legitimidade popular, que se provou igualmente incapaz de gerir a crise financeira e a crise de refugiados.

UE é incapaz de se apresentar como portadora de esperança

Na verdade, hoje a União Europeia é já incapaz de se apresentar como portadora de qualquer esperança de melhoria de condições de vida das populações, principalmente as mais fragilizadas pelas sucessivas crises. E incapaz de responder às necessidades dos povos, o diretório europeu desiste sequer de uma narrativa de convergência: aos cinco cenários apresentados pela Comissão Europeia, que afinal se resumem a uma Europa a duas velocidades, cavalgando mais a divergência entre centro e periferia, junta-se o avanço da Cooperação Estruturada Permanente para Defesa e Segurança, que não é mais do que a militarização e a transferência dos poucos fundos de coesão social para a indústria de armamento. No lugar do sonho de uma Europa de prosperidade e paz, a União Europeia hoje apenas tem para oferecer o medo da rutura como factor de coesão. Não é construção, é chantagem.

 

Resta então debater o que devemos fazer enquanto país. Mesmo sem saber o que acontecerá à União Europeia, temos a responsabilidade de apresentar claramente as nossas escolhas em relação ao país. Isso implica compreender os múltiplos cenários para o desenvolvimento da União Europeia e ponderar a hipótese de novas crises de um sistema financeiro que permanece inerentemente instável. Implica também trabalhar sobre a evidência de que a dívida portuguesa, pública e externa, é insustentável e terá de ser reestruturada. A hipótese de submeter o país a duas décadas de excedentes primários colossais é uma pura fantasia, mesmo num cenário em que nada acontecesse.

Nos últimos dois anos, a solução política que sustenta o atual governo conseguiu algumas vitórias notáveis. A criação de emprego destes dois anos não tem paralelo durante o período de vigência do Euro e provámos que é possível uma política de devolução de rendimentos, ou seja, que a devolução de rendimentos não só não prejudicou como, pelo contrário, foi um factor de consolidação orçamental via crescimento.

Mas é muito o que permanece por fazer. O emprego que está a ser criado é, na esmagadora maioria dos casos, com salários baixos, que só não são mais baixos porque negociámos o aumento do salário mínimo para 600 euros ao longo da legislatura. A despesa com saúde e educação aumentou, mas permanece muito abaixo dos valores pré-crise. O dinamismo do turismo tem apoiado a evolução da balança corrente, mas não há nenhuma mudança estrutural a ocorrer na economia portuguesa nem tal será possível sem níveis incomparavelmente maiores de investimento público e sem o resgate de empresas estratégicas na área da energia e comunicações.

aceitar os constrangimentos e rejeitar a reestruturação da dívida condena o nosso país a uma rota de sub-desenvolvimento

Quando olhamos realisticamente para a relação entre as necessidades de desenvolvimento do país e as limitações que nos são colocadas pelos constrangimentos europeus e o nosso nível de endividamento, o que verificamos facilmente é que aceitar esses constrangimentos e rejeitar a reestruturação da dívida condena o nosso país a uma rota de sub-desenvolvimento.

 

Por mais meritórios e bem-sucedidas que sejam os esforços actualmente em curso para melhorar a qualidade de vida das pessoas, devemos a nós próprios e àqueles que representamos uma reflexão sobre a compromisso necessário para retirar o país do regime de protetorado.

Compromisso para retirar o país do regime de protetorado deve incidir em dois pontos

Esse compromisso deve incidir sobre dois pontos:

Em primeiro lugar a reestruturação da dívida, a nacionalização de empresas estratégicas e a política orçamental contra-cíclica de que o país precisa exigem uma postura em contracorrente com as orientações das instituições europeias. O mesmo acontece com o necessário reinvestimento nos serviços públicos fundamentais e com o aumento da proteção do trabalho;

Em segundo lugar a afirmação clara de que o país não aceitará mais qualquer programa de destruição como aquele que teve com a Troika nem imporá mais sacrifícios contra-producentes àqueles que já perderam tanto com a política de austeridade. Carece de qualquer legitimidade a imposição ao país de sacrifícios e perda de direitos em nome de uma união monetária que foi apresentada como um factor de prosperidade.

O projeto de integração europeia, que foi apresentado aos portugueses com tanta esperança tornou-se num tremendo pesadelo

O projeto de integração europeia, que foi apresentado aos portugueses com tanta esperança tornou-se num tremendo pesadelo. Não faz sentido persistir na obstinação do Euro se a única coisa que a união monetária tem para oferecer é uma Europa dividida.

Pela minha parte, acredito que este país se pode relacionar com os seus parceiros ao mesmo tempo que protege o seu povo. Não ignoro nenhuma das enormes dificuldades que tem o caminho que proponho, mas sei que a história nos ensina que fazer do nosso país uma colónia governada pelo medo é um triste destino para deixar às gerações que querem viver neste país. Gerações que, não tenho dúvida, lutarão por ele como nós lutamos.

Intervenção na Conferência “Que Europa Queremos?”, promovida pelo Diário de Notícias - 21 de dezembro de 2017

Catarina Martins
Sobre o/a autor(a)

Catarina Martins

Eurodeputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Atriz
Termos relacionados: