As novidades da operação Marquês reacenderam o debate sobre a corrupção no país. A corrupção é uma doença endémica e perigosa para a Democracia. Mas, circunscrever a análise a um discurso moralista, apenas tapa o assunto com a peneira. Existirá a tentativa da direita e da sua extrema utilizarem o ultraje moral para alimentar os seus projetos de poder. A realidade mostra que só a esquerda socialista tem as ferramentas adequadas para enfrentar o fenómeno.
Como socialistas, temos que analisar os fenómenos de um ponto de vista estrutural, contextualizando-os dentro de sistemas mais vastos. Nessa perspetiva, a corrupção não acontece simplesmente porque as penas são leves ou porque a 'justiça não funciona'. A corrupção acontece sim, porque está diretamente relacionada com o modo de acumulação de riqueza de algumas sociedades.
Deste ponto de vista, o conceito de sistemas de acumulação, desenvolvido pelo economista Saad-Filho1, é útil e enriquece o debate. O capitalismo, enquanto modelo socioeconómico, tem como principal motor a acumulação de capital. Toda a atividade económica da sociedade é subordinada a esse imperativo. Os sistemas de acumulação são as expressões concretas desses processos de acumulação numa dada sociedade e num dado período.
temos que reconhecer que a melhor política de combate à corrupção é a redistribuição de riqueza e a desestabilização, de cima para baixo, da balança de poder na sociedade
Estes sistemas são determinados por um conjunto alargado de fatores, como os processos estruturais e institucionais que reproduzem a acumulação e distribuição de riqueza. Os sistemas de acumulação envolvem, portanto, as formas de organização do estado, regimes de propriedade, regimes jurídicos e de regulação de mercados e da atividade económica, etc. Segundo o conceito, a acumulação de capital opera, é constrangida e é inibida por estes sistemas de acumulação.
Quando olhamos para o capitalismo português, rapidamente concluímos que não só estamos perante um capitalismo onde o rentismo é um dos principais vetores de acumulação de lucros, como existe também uma continuidade forte da elite económica do país.
Como ficou empiricamente demonstrado na obra de investigação Os Burgueses (2014), o núcleo de detentores de poder económico em Portugal é marcadamente diminuto e concentrado num punhado de famílias. Grande parte deste poder económico nasce no contexto da política económica do Estado Novo. Ao mesmo tempo que o regime distribuía rendas fixas e monopólios naturais, a máquina repressiva do Estado Novo assegurava não só as condições para a exploração máxima dos trabalhadores, como também proteção contra competidores estrangeiros.
Apesar do interregno no período imediato ao 25 de Abril, esta relação umbilical com o estado perdura até aos dias de hoje, embora em moldes distintos. As privatizações dos anos oitenta e noventa, levadas a cabo pelos governos de Cavaco e Guterres, restituíram muito do poderio económico acumulado no passado e as portas giratórias entre ex-governantes do centrão político e as principais empresas do país, asseguram as condições para a reprodução dessa relação umbilical.
Este é, no concreto, o sistema de acumulação vigente em Portugal.
À luz dos sistemas de acumulação, a corrupção não é nenhuma subversão do sistema. Pelo contrário, em muitos casos é um vetor relevante nos processos de acumulação de riqueza. No caso português, a corrupção é a inevitável conclusão de um sistema de acumulação que tem como um dos seus principais vetores de acumulação as obras públicas, as concessões de serviços públicos, empreendimentos imobiliários, etc., onde a proximidade e o compadrio com poder político são fundamentais para assegurar contratos.
O combate à corrupção é de facto urgente. Mas esse combate tem que estar alicerçado numa visão estrutural que reconhece o papel da corrupção na reprodução do equilíbrio de forças e poder na sociedade. O combate à corrupção é, portanto, uma questão de classe. Para além das alterações profundas no que toca aos prazos de prescrição de crimes de corrupção e enriquecimento injustificado, temos que reconhecer que a melhor política de combate à corrupção é a redistribuição de riqueza e a desestabilização, de cima para baixo, da balança de poder na sociedade.
Nota:
1 Ver Brazil: Neoliberalism versus Democracy (2018), de Alfredo Saad-Filho e Lecio Morais, para uma exploração do conceito no caso brasileiro.