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Nunca sentimos tanta vontade de abraçar nem tanto medo de o fazer

A preocupação, a desconfiança e o medo são agora a norma. Mas também o são a solidariedade, a entrega, a entreajuda, a coragem e o sentido de união. De repente, sentimentos e comportamentos tantas vezes tão antagónicos coexistem como duas faces da mesma moeda.

A pandemia do Covid-19 apanhou o mundo de surpresa e mudou tudo. Mudou a organização social e laboral, as relações familiares e de vizinhança, o quotidiano na comunidade e nas nossas casas.

E que impressionante é a rapidez com que tudo pode mudar. Olhamos com um misto de surpresa e horror para as imagens que nos entram pelas televisões como quem vê um filme de ficção científica mas que vêm de todos os países do mundo, bem reais: as ruas vazias ou os camiões militares carregados de cadáveres, pessoas de passo apressado com mãos de plástico e máscaras na cara. E espreitar à janela ainda é um baque, quando percebemos que a ficção também chegou aqui.

Também aqui nos deparamos com as ruas vazias e as portas fechadas. Também aqui nos surpreendemos com os sons que sempre existiram mas que nunca antes ouvimos. Também aqui nos cruzamos a medo na rua e nos serviços, olhamo-nos com um sentimento misto que intersecta a desconfiança e o receio do vírus com a compreensão e a empatia por estarmos todos no mesmo barco. Também aqui combatemos um inimigo invisível e silencioso, mas que sabemos estar entre nós e que se propaga a cada minuto, a cada abraço, a cada beijo. Nunca sentimos tanta vontade de abraçar nem tanto medo de o fazer.

A preocupação, a desconfiança e o medo são agora a norma. Mas também o são a solidariedade, a entrega, a entreajuda, a coragem e o sentido de união. De repente, sentimentos e comportamentos tantas vezes tão antagónicos coexistem como duas faces da mesma moeda.

Mais do que nunca, apercebemo-nos da coragem e da entrega de médicos, enfermeiros e auxiliares de saúde que trabalham continuamente, sujeitos mais do que ninguém à contaminação, para assegurar que todos somos tratados. E também da de todos os trabalhadores de serviços essenciais que continuam expostos para que a vida possa continuar.

Em simultâneo, vemos a solidariedade e a partilha de tantos que organizam espontaneamente redes solidárias informais, que olham pelos mais idosos e vulneráveis, que se oferecem para fazer as compras ou ajudar no que puderem. Vemos a união que fez, aqui e em tantos países do mundo, com que tanta gente fosse às janelas para agradecer a quem continua a garantir-nos a vida, ou que levou artistas que a cantar às varandas ou por outras vias, a fazer chegar a cultura a quem está fechado em casa. Cada um dá um exemplo inédito de esforço conjunto, respeitando as indicações das autoridades, mantendo distâncias de segurança, adotando as medidas de desinfeção, respeitando o isolamento, protegendo-se a si e aos outros.

Perante este novo e tremendo desafio, importa também, mais do que nunca, proteger o trabalho e a vida, e para isso é essencial a contribuição de toda a sociedade. O Estado de Emergência não pode servir para suspender a democracia mas sim para proteger direitos: o direito ao trabalho, para o qual é imprescindível a proibição de despedimentos; a proteção de quem está em isolamento, garantindo o rendimento para que possa fazer face às suas responsabilidades; o direito à habitação; o direito à saúde, que exige a requisição de meios, instalações e profissionais aos privados para integrar o Serviço Nacional de Saúde, assim como a requisição de laboratórios para assegurar que são feitos testes de diagnóstico a mais pessoas ou a requisição para produção de máscaras, equipamentos de proteção individual e gel desinfetante.

Da mesma forma, não podemos esquecer os mais vulneráveis. O isolamento social não minimizou as situações de risco e emergência social. Pelo contrário, a nova realidade de confinamento pode agudizar muitas situações, nomeadamente as de violência doméstica. Pode igualmente ser catalizadora de ainda mais isolamento de pessoas vulneráveis, seja de idosos, pessoas dependentes ou com doença mental. É por isso urgente continuar a garantir respostas, promover a organização, a nível autárquico, de redes de apoio extraordinárias e a abertura de linhas telefónicas de apoio e informação para assegurar que ninguém se sente ainda mais sozinho e isolado e que todos são protegidos.

No fim, resta a esperança, expressa em cada vez mais mensagens partilhadas nas redes sociais, nas janelas e varandas, nas principais ruas e praças do país, e que nos liga tão intimamente: a de que seremos capazes de derrotar este inimigo invisível e d­­e reorganizar as nossas sociedades.

Artigo publicado em “O Setubalense” a 23 de março de 2020

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
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