A disputa pela razão no que é particular (como a consideração de Marcelino da Mata como um criminoso de guerra ou um herói) ou no que é alegórico (como a sugestão de demolição do Padrão dos Descobrimentos) mostra bem o quanto nos entretemos a debater o acessório porque nunca fomos capazes do confronto com o essencial.
Também por isso, a guerra colonial - assunto tabu durante décadas - é hoje uma fonte de entrincheiramento, maniqueísta, capaz de convocar os piores sentimentos de revolta na disputa do prémio sobre quem transporta a mais feroz portugalidade à flor da lapela.
O antigo bilhete de identidade de Portugal sofreu alterações mas ninguém informou o país e os portugueses. O debate sobre o nosso processo identitário está por fazer. Pensando que estamos a debater o nosso passado colectivo, só fazemos transparente o presente bipolar que temos em mãos. Na realidade, não andamos a debater passado algum, andamos a usá-lo.
Afirmar que Marcelino da Mata foi um criminoso de guerra (e foi-o, à luz de qualquer Convenção Internacional, independentemente do tratamento inaceitável a que depois foi sujeito no quartel do RALIS) faz sair da toca os que sempre se guardaram, saudosistas, no armário. Mas não só. À custa de décadas de esquecimento e desprezo, também enfileira aqueles que Portugal desprezou durante décadas em que resolveu fazer de conta que, sendo o último país a descolonizar, não ia ter custos acrescidos. Muitos daqueles que combateram na África colonial sentem, intimamente, que apelidar de criminoso de guerra "alguém que lá esteve" é um acto de desrespeito.
Chegamos a este ponto. Aquilo que os distingue, o carácter que os honra como combatentes, tantos deles forçados e sem causa, o que os separa dos facínoras, é algo que já não os determina, pelo contrário, confunde-se, deslocando-se da perspectiva. Para tantos deles, compreensivelmente, tanta dor, tanto sacrifício devia ter tido um propósito, um significado. Uma recompensa, talvez. Ou um diálogo geracional, ter sido falado entre nós, valorizado. Não teve e não foi. Teve direito a um pano encharcado e papel mata-borrão. E essa ausência, essa inutilidade, coloca-os agora vulneráveis ao veneno e à intoxicação. Num ápice, alguns saltam para dentro da bolha da nostalgia colonial.
A Humanidade vive segundo as suas próprias leis. Uma das premissas é que os crimes podem prescrever, mas a História não. Mesmo que criminosa, a História não tem direito à prescrição porque vive sob o jugo da memória. E essa não esquece. Se ninguém arrasta os crimes prescritos em praça pública, por que razão não se deve debater - com seriedade, no seu contexto, forma e matéria - a presença das iniquidades da História no espaço público? E acima de tudo, em vez da tentação de terraplenar um país pejado de obras e figuras controversas, porque não edificar, construir outras que as desconstruam, lhes deem leitura e contraponto, expondo todo o diálogo que devíamos ter tido mas que preferimos encarcerar à custa de comprarmos esta paz podre?
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 26 de fevereiro de 2021
