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A nossa precariedade não é bem precariedade

O combate à precariedade tem na advocacia um terreno muito importante. É mais que tempo de aplicar a lei num setor onde ela é o instrumento de trabalho de todas as horas.

A precarização das relações laborais tem muitos rostos. Essa diversidade serve para esconder a palavra precariedade e a substituir por outras bem mais perfumadas como ‘formação’, ‘estágio’ ou ‘bolsa’. Ou prestação de serviços, também.

Vejam o seguinte caso. Um profissional tem um posto de trabalho numa sociedade. Tem um horário de trabalho fixado pela sociedade. Tem um salário pago pela sociedade. Obedece hierarquicamente à estrutura da sociedade e isso, como em tantas outras sociedades, não é incompatível com a autonomia técnica no seu desempenho diante dos problemas concretos que tem que resolver. A pergunta é esta: este profissional não deve ter um contrato de trabalho? A resposta é: deve, sim.

Dever, deve. Mas se o profissional em causa for advogado já não. Milhares de jovens advogados têm uma condição precária nas respetivas sociedades em que se inserem. Têm obrigações idênticas – ou até superiores – às de qualquer trabalhador por conta de outrem. Mas, dizem-lhes, são por definição profissionais liberais. Por definição, porque a relação com os clientes exige independência que uma subordinação hierárquica não permite. E, à pala desse princípio moral, temos milhares de advogados a quem são negados direitos fundamentais, desde o direito a férias ou a licença de parentalidade até à proibição de despedimento sem justa causa.

É o esquema do costume: somos contra a precariedade em todo o lado menos aqui na quinta, porque aqui na quinta não é bem de precariedade que se trata, é outra coisa. Neste caso, dizem-nos, é uma prestação de serviços especial. Ou seja, reconhece-se que não é bem uma profissão liberal, reconhece-se que, lá no fundo lá no fundo, há vínculos de natureza laboral, reconhece-se mesmo que o que está não está bem. Reconhece-se tudo, desde que no fim não se fale de contrato de trabalho para advogados que são, de facto, trabalhadores por conta de outrem.

O combate à precariedade tem na advocacia um terreno muito importante. É mais que tempo de aplicar a lei num setor onde ela é o instrumento de trabalho de todas as horas. É mais que tempo de, lá onde um advogado é, de facto, um trabalhador por conta de outrem, ser titular daquilo de que qualquer trabalhador é: um contrato de trabalho.

Artigo publicado no diário “As Beiras”, a 13 de abril de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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