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Não vai ter medo, vai ter luta!

Nem belas, nem recatadas, nem do lar é o que uma voz coletiva que não conhece fronteiras grita e isso tem consequências entre-nós.

O recente caso de violação coletiva de uma jovem de 16 anos, no Brasil, representa, por si só, a expressão de um crime hediondo e inaceitável, não só pela sua marca de género, mas também porque representa um atentado à própria ideia de Humanidade, a qual não pode ser pensada na ausência de, pelo menos, quatro predicados éticos: a igualdade, a dignidade, a liberdade e a felicidade. Esta ideia de Humanidade é universal, porém nunca é abstrata, uma vez que o seu sentido, antes de ser jurídico ou ético, é político e radica no corpo e na história particular de cada ser humano, individual e irrepetível. Trata-se de um crime tão inaceitável como insuportável e que impressiona pelos números associados, entre os dos agressores e a soma de mais uma mulher às gritantes estatísticas da violência machista tornada prática comum. Mas a sua condenação é absoluta e refere-se primeiramente à defesa da singularidade humana daquela rapariga. Assim, o crime de violação, tal como todas as formas de violência de género, é inaceitável em princípio e sempre grave em qualidade. Os agravantes quantificáveis apenas reatualizam a sua natureza criminosa.

Mas é preciso dizer mais e, sobretudo, fazer mais, pois os contornos deste caso, o seu contexto e carácter público, a ação das instituições e as consequências sociais que já protagoniza obrigam-nos a considerar pelo menos duas lições.

O que se sabe sobre as condições em que a agressão teve lugar, as publicações dos vídeos da agressão nas redes sociais e os likes associados, os suspeitos ilibados e os torturados, os delegados machistas e as perícias que apenas insultam a dignidade da vítima, então julgada no espaço público enviesado dos media, das redes sociais, enfim da sociedade medíocre e mediatizada, ela sim, de modo cruel e gratuito, feita culpada do crime que a tornou uma coisa supérflua e lhe roubou a humanidade, tudo isto num Brasil onde a cada 11 minutos uma mulher é violada ou a cada 4 minutos uma mulher chega aos serviços de saúde por ter sofrido violência física, onde a “cultura do estupro” é a regra, o direito ao corpo é limitado e o aborto é crime, o governo não-eleito é apenas composto por homens e o presidente golpista nomeia uma militante anti-aborto para a Secretaria de Mulheres, um deputado pode dizer a uma deputada que só não a estupra porque ela não merece e não perde o mandato, o ministro da educação recebe Alexandre Frota como conselheiro, o ator que confessou recentemente num programa de televisão, impunemente e com aplausos da plateia, a violação de uma mãe-de-santo… Há muito mais para acrescentar entre vírgulas, basta pesquisar. Porém, o que esta enunciação torna evidente é a intuição da lição que a institucionalização da igualdade, o poder vazio do Direitos Humanos tornados palavras vãs, a democracia-fantoche e a hipocrisia social não podiam esconder para sempre: a banalidade do machismo.

Não porque os crimes e práticas machistas se tornaram banais e vulgares, no sentido da sua generalização e perda do seu valor de atentado moral, mas sim porque estes não resultam de exceções praticadas apenas por monstros. A regra que os tornou expressão de uma cultura, de um modo de vida e de leis e costumes generalizados, resulta de uma sociedade cúmplice e incapaz de pensar coletivamente sobre o valor e a dignidade intrínseca dos seus membros e também sobre as condições de possibilidade da sua vida em comum. Os dias e as leis passam, as instituições reproduzem e normalizam as opressões, a comunidade parece assistir impávida e impotente e as violências, os assédios e o sexismo entranham-se, como gestos automáticos e quotidianos, na vida de todos os dias e no corpo que já não se conhece humano, mas apenas coisa, objeto, outro.

Ah, mas Não vai ter medo, vai ter luta! E perante este cenário devastador, outra enunciação começa: o vídeo feito por ativistas feministas quebra o silêncio mediático com milhões de visualizações, a advogada corajosa pede o afastamento do delegado machista e incompetente e este sai de cena, as redes sociais viram e somam-se hashtags, convocatórias e pontos de encontro para exigir justiça e o fim da cultura do estupro, as mulheres e as redes feministas manifestam-se em muitas cidades brasileiras, como São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro, este mês já é considerado o #junhofeminista, e em solidariedade e porque também não suportamos mais o machismo, os assédios em todo o lado, as violências de género e também a transfobia e o racismo, a inspiração da luta feminista no Brasil transfigura-se na oportunidade para ocupar a rua com concentrações feministas nas cidades portuguesas do Porto, Coimbra e Lisboa (onde a experiência do poder se torna concreta e acontecimento, as palavras tornam-se testemunho-sem-cortesia e a liberdade torna-se dança e agir comum), ao mesmo tempo, no Brasil, a multidão sai também às ruas porque a Primavera Feminista veio para ficar e quebrar o ciclo dos leopardos que querem que tudo mude para que tudo fique na mesma… Esta é a segunda lição: a coragem feminista realizou o impossível e a relação de forças virou.

O tempo da política inócua esgotou e esgota-nos. Nem belas, nem recatadas, nem do lar é o que uma voz coletiva que não conhece fronteiras grita e isso tem consequências entre-nós. O vazio do medo é ocupado com poder e insubmissão tornados experiência vivida. Se radical se diz do que tem raízes, é tempo de também inscrever a luta feminista na nossa vida de todos os dias e fazer transbordar as sedes, as redes, os media e as salas de reunião. Encontramo-nos na rua, por todas elas e por todas nós.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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