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Não sou um passaporte

A emigração é bode expiatório para a paupérrima governação, é a expiação de todos os infortúnios, é a justificação de argumento vazio e desleixado dos que não entendem homens e mulheres de todo o mundo como seres humanos de igual direito.

As fronteiras são linhas imaginadas por homens e mulheres; são delimitações de um espaço de todos nós, destinadas a compartimentar riqueza, a circundar culturas, a perpetuar poder.

Esquecem os artistas das linhas imaginárias, que mais do que a geometria do espaço, somos os pequenos lugares que nos viram nascer, crescer, sonhar, ambicionar, sorrir na ilusão, chorar na tristeza. Não somos uma bandeira, mas sim as pessoas que nos amam e que amamos.

Quis, no entanto, este mundo em mudança constante, de traços comuns ao longo dos séculos, que as fronteiras fossem mais do que linhas: são a marcação da diferença entre homens e mulheres, iguais na sua génese, diferentes apenas nas suas virtudes, cor de pele ou crenças.

São cada vez mais os que ousam cruzar estas barreiras; afinal vezes de mais, num mundo de cruéis desigualdades, a busca por sonhos, esperança e oportunidades não se contém em fronteiras.

Alastra no entanto um preocupante sentimento contra os que ousam querer mais. A emigração é bode expiatório para a paupérrima governação, é a expiação de todos os infortúnios, é a justificação de argumento vazio e desleixado dos que não entendem homens e mulheres de todo o mundo como seres humanos de igual direito. O sentimento anti-emigração é a desculpa fácil dos que abusaram do poder em seu proveito, e dos que o pretendem fazer.

Tendo partido, de coração pesado, com as lágrimas enxutas pelo entusiasmo de quem busca esperança, recuso-me a ser um passaporte. Sou uma pessoa, um enfermeiro, um cidadão de um mundo que sonho de oportunidades justas para todos.

Não sou um passaporte quando parti deixando todos os que em mim acreditavam, em busca de novas oportunidades, e que tantos outros em mim pudessem acreditar.

Não o sou quando entrego o melhor que sei, a imensa experiência que acumulei, ao serviço daqueles que cuido, adaptando-me a uma nova cultura, acreditando que os posso cuidar tão bem quanto aqueles que aqui nasceram.

Não sou um passaporte quando despendo do meu tempo livre para entender cada pormenor de uma forma de ser e estar diferente, preocupando-me em não ser mais um, mas um que marque uma diferença positiva.

Não sou um mero documento quando sou as mãos que cuidam, aquelas que administram os medicamentos com eficiência, que executam as técnicas com mestria, que seguram a mão nos momentos de dor e desespero.

Não sou um passaporte quando esqueço a minha família, a largos quilómetros, fazendo dos que cuido a minha família, tratando-os com toda a dignidade, respeito e empenho que exigiria um filho para um pai ou para uma mãe.

Não sou um visto ou uma permissão administrativa quando estou presente num último suspiro, quando as palavras não importam e a presença calorosa e o olhar empático são linguagem universal. Não o sou quando alivio o sofrimento, quando enxaguo as lágrimas, quando tenho um sorriso nos dias mais cinzentos, um momento de humor oportuno, as palavras certas que rompem o desânimo.

Não sou um passaporte quando tenho todas as respostas para dúvidas e anseios, numa língua que me dediquei a aprender; quando tenho nas mãos a paixão por um cuidar que não tem palavras, antes gestos universais.

Não sou um número, uma fotografia cinzenta e uma impressão digital quando foi o meu esforço que fez a diferença na cura de alguém, que devolveu um pai a casa, um filho aos pais, uma esposa ao marido. Não sou um passaporte no momento em que na porta do Hospital tudo parece um pesadelo terminado, aliviado pelo sorriso e pela persistência dos que cuidaram.

Não sou um passaporte quando esqueço os meus momentos cinzentos, para que sejam impercetíveis a quem cuido, para que as horas que passo àquela cabeceira não sejam de um vazio e frieza assustadores, mas antes de conforto, esperança e confiança.

Não sou um pedaço de papel quando me lembro de novas formas de cuidar, aprendidas após cuidar milhares de outros que diferiam apenas na língua que falavam e no sitio onde nasceram. Não sou um passaporte quando tudo o que quero é curar melhor e os meus atos não se detêm pela raça, cor, crença ou nacionalidade de quem cuido.

Não sou um passaporte quando todos os dias regresso a casa sabendo que nenhum gesto deixei por fazer ainda que daqui a um mês ou um ano quem cuidei seja o primeiro a maldizer quem emigrou.

Não sou um passaporte quando recebo o meu salário, ganho com o esforço diário, contribuindo da mesma forma que todos, orgulhoso por cada euro, libra, ou seja o que for, ser o resultado exclusivo do meu empenho.

Não o sou quando sonho, quando ambiciono, sou apenas um ser humano, de cabeça erguida e esperança no futuro.

Não sou um passaporte quando ambiciono ser avaliado com uma cegueira para onde nasci, para a cor da minha pele, para as minhas convicções, mas antes por aquilo que faço.

Sou um passaporte quando o valor é dado pelo local de nascença, quando os direitos são concedidos pela naturalidade, quando as dificuldades crescem exponencialmente porque demoro mais tempo a entender uma língua estrangeira. Sou um passaporte, descartável até ao dia em que necessitarem que seja pessoa, dia esse em que eu, como tantos, saberemos perdoar.

Um passaporte sente, um passaporte chora, um passaporte sorri, um passaporte cuida, um passaporte está em todo o lado, e guardado no bolso, junto às desculpas patetas, somos todos iguais.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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