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Museus sem fronteiras

É paradoxal que, no museu, as fronteiras mais profundas não são as que nos distanciam geograficamente. São aquelas que impedem o pobre, o negro ou o refugiado de se rever neste espaço.

O último encontro do ICOM - International Council of Museums decorreu no mês de agosto na cidade de Praga. A eleição do seu novo comité conta com a presença de Luís Raposo, arqueólogo e presidente do ICOM Europa. O debate, marcado pelo impacto que as alterações climáticas, a pandemia e a guerra trouxeram ao universo museológico, serviu para atualizar a definição de museu:

"Um museu é uma instituição sem fins lucrativos e permanente ao serviço da sociedade que investiga, coleciona, conserva, interpreta e expõe o património tangível e intangível. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus fomentam a diversidade e a sustentabilidade. Funcionam e comunicam de forma ética, profissional e com a participação das comunidades, oferecendo experiências variadas para a educação, o prazer, a reflexão e a partilha de conhecimentos".1

O esforço do ICOM Internacional e das suas várias representações nacionais espalhadas pelo mundo não é de somenos importância quando a dinâmica social, política e económica tem vindo a resgatar fantasmas do passado e o papel da História é uma arma cada vez mais poderosa no debate político. Há, porém, um confronto mais profundo entre os museus e a (in)capacidade de atrair públicos diversificados. Durante a pandemia, em Portugal, assistiu-se a uma perda de visitantes na ordem dos 70%. Além dos constrangimentos financeiros pesados que isso acarretou (principalmente quando uma grande percentagem sobrevive com a receita da bilheteira), a perda de públicos não se recupera instantaneamente.

O movimento de abertura do museu à comunidade é tão mais importante quanto mais capacidade de projetar crítica social nele contiver

Os grandes projetos de interação entre as equipas dos museus e a comunidade demoram anos a dar frutos. Há uma diferença abismal entre um visitante que experimenta uma exposição ou uma turma de estudantes que ensaia, de forma sustentada e reflexiva, uma ideia sobre o papel do museu nas suas vidas. A recuperação do número de visitantes devido ao turismo (que já atingiu records, batendo os números pré-pandémicos2) não deve fazer descansar as equipas destas instituições. A fronteira que precisa de ser transposta não é só a que nos faz chegar turistas europeus às nossas principais cidades. O movimento de abertura do museu à comunidade é tão mais importante quanto mais capacidade de projetar crítica social nele contiver. A partilha de conhecimentos, que a definição de museu que o ICOM nos apresenta, enriquece à medida que espelhar as novas configurações demográficas e sociais contemporâneas. E isso, na maioria dos museus, continua a não ser atingido.

É paradoxal que, no museu, as fronteiras mais profundas não são as que nos distanciam geograficamente. São aquelas que impedem o pobre, o negro ou o refugiado de se rever neste espaço, mesmo que resida na cidade, no bairro, na rua onde todos os dias, as filas de turistas esperam ansiosamente pela vez de entrar. “Museums have no borders, they have a network” é quase um lema de resistência num período de mais muros e bombas. Para ganhar corpo no quotidiano cultural, é preciso experimentá-lo.

Notas:

Sobre o/a autor(a)

Museólogo. Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto
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