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Morte e vida num olhar

A peste tem estado sempre presente na literatura. Não surpreende que regresse agora, não só pelo nevoeiro atual como porque provoca choques civilizacionais.

Uma das raras boas notícias deste susto que não tem fim é que Orhan Pamuk parece estar a concluir os quatro anos de escrita do seu prometido “Noites de Peste”, um romance situado em 1901, numa dessas epidemias que abanam o mundo com a regularidade de um pêndulo. Como nos explicou na semana passada no Expresso, este livro tem uma linhagem em que o autor encontra Tucídides, com a “História da Guerra do Peloponeso”, que descreve a doença que matou Péricles e uma parte de Atenas, ou depois Daniel Defoe, que foi buscar aos apontamentos do seu tio a memória da peste bubónica em Londres, em 1664, em “Um Diário do Ano da Peste”, ou Alessandro Manzoni, que em 1827 ficcionou uma epidemia em Milão, dois séculos antes, com “Os Noivos”. Poderia acrescentar o “Decamerão”, de Giovanni Boccaccio, a narração das histórias contadas por sete mulheres e três homens fugidos da Florença doente no século XIV, mas talvez este livro seja mais uma narrativa do Iluminismo do que do medo.

Os nomes do medo

Não se sabe o que nos contará Pamuk depois destes antepassados, mas podemos confiar no seu talento para explorar a vida da sua Istambul quando a peste entrelaça o pavor, que busca um culpado para aliviar consciências ou para impor um poder, e o pânico, que revela a incapacidade das nossas defesas. De facto, a peste tem sido um fantasma sempre presente na literatura e não surpreende que regresse agora, não só pelo nosso nevoeiro atual (embora Pamuk tenha escolhido o tema sem saber o que seria a trágica atualidade quando acabasse o livro), como porque provoca choques civilizacionais que não são esquecidos.

Há meia dúzia de anos, “Estação Onze”, de Emily St. John Mandel, tornou-se a mais recente reenunciação desta fantasmagoria: uma gripe matou 99% da população mundial e, 20 anos depois, uma trupe de alguns atores e atrizes, entre os raros sobreviventes, percorre a terra representando Shakespeare, para se lembrarem e fazerem lembrar. Embora a autora se referencie ao “2666” de Bolaño, um colosso sobre a maldade humana, ela é profundamente otimista sobre a reconstrução do mundo. No entanto, a pandemia é a angústia, como se lê em três outros monumentos anteriores que têm sido lembrados nestes dias, sendo que os dois primeiros voltaram às listas de best-sellers.

Angústia e esperança

Os dois primeiros são o “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago (1995), sobre o qual escreverei depois, e “A Peste”, de Albert Camus (1947), um grande sucesso literário, com nove traduções num ano e uma maré em França. O autor vivia o seu momento de glória depois da Resistência e, como editorialista do influente diário “Combat”, era uma das vozes do pós-guerra. Camus tinha estado em 1941 em Orã, na Argélia ainda francesa, e tinha voltado para a metrópole para se curar da tuberculose, em 1942. Foi apanhado pela ocupação alemã e o seu livro tem sido explicado como uma alegoria do sofrimento de uma sociedade aprisionada pelos nazis. Simone de Beauvoir, ao tempo da publicação, e Roland Barthes, meia dúzia de anos depois, insurgiram-se contra esta alusão, acusando o autor de promover o fatalismo e a irresponsabilidade humana: a invasão e o fascismo são escolhas, mas a doença não o é. Tony Judt, que discorda desta leitura, argumenta que para Camus a alegoria da peste é uma alegoria do nazismo, que seria uma alegoria do fechamento cultural da sociedade.

Por isso, escreve Judt, ele fala por três dos personagens dominantes da novela: Rambert, o jornalista, que está separado da mulher e prepara a fuga da cidade, mas se arrepende e fica; o Dr. Rieux, o modelo do cuidador, e Tarrou, que será vitimado pela doença e era o mais perspicaz. Em todos eles, o que o autor procuraria seria afirmar uma moral: “Pode parecer uma ideia ridícula, mas a única forma de combater a praga é a decência.” E daí o seu pessimismo angustiado, que o faz começar o último parágrafo do livro com a constatação triste: “O bacilo da praga nunca morre ou desaparece inteiramente.” No mesmo ano, na sua “Exortação aos Médicos da Peste”, Camus fez a lista de recomendações técnicas para a proteção dos profissionais de saúde, mas não ocultou o seu desespero. Com a disseminação da doença, conclui o texto com uma preocupação: virá “o dia em que não poderei falar-lhes de nenhum remédio, salvo a compaixão, que é parente da ignorância”. Afinal, estamos sozinhos.

Morte em Veneza

O terceiro destes grandes romances é o curto “Morte em Veneza”, de Thomas Mann (1912), filmado por Visconti em 1971 com uma fidelidade febril. A história é conhecida: Gustav von Aschenbach, compositor consagrado, passeia-se por Veneza e instala-se no Lido, a que chegam notícias de uma misteriosa doença que grassa na cidade. É uma epidemia de cólera, que as autoridades procuram esconder, os hóspedes do hotel hesitam, Aschenbach demora-se, fica preso pela visão do jovem Tadzio, de uma família polaca com a qual não troca uma palavra. Mann teria ficado impressionado pela morte de Mahler no ano anterior ou pela sua leitura de Freud ou de Nietzsche, sabemos pouco sobre esse turbilhão. O facto é que nos descreve a “paixão como confusão e degradação” no meio da epidemia. O derradeiro encontro é um momento cinematográfico, o compositor está sentado na cadeira na praia, Tadzio, que partirá no dia seguinte, vira-se para ele e olha-o. O coração de Aschenbach falha-lhe e morre.

A morte neste olhar é um dos momentos mais humanos da tragédia e, na verdade, da vida, a certeza da continuidade humana. Tadzio vai para casa. Afinal, não estamos sós.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 16 de maio de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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