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Moçambique: um país de muitos homens e de muitos países

Tem razão o escritor angolano José Eduardo Agualusa quando afirma que “o que a comunidade internacional está a fazer em Moçambique não é ajudar, é indemnizar por danos causados”.

“Se um país tem muitos homens, um homem tem muitos países”.

A autoria desta frase é atribuída a um escritor e poeta moçambicano, natural da cidade da Beira.

Moçambique (para além de países vizinhos, Malawi e Zimbabwe), especialmente a Beira, foi, no mês passado, flagelado pelo ciclone “Idai”.

Culturas destruídas e estradas desaparecidas num “ oceano” pluvial de 9.200 Km2 (uma faixa de 128 Km de comprimento por 72 Km de largura), quase cem mil (97.424) casas destruídas e mais de cem mil (10.1587) muito danificadas. E, sobretudo, mais dramático, contados até agora, 602 mortos e 1.640 feridos.

Para além deste rasto efectivo de destruição e de morte em que, de imediato, cerca de um milhão e oitocentas e cinquenta mil pessoas foram de algum modo directamente afectadas, restará ainda, por muito tempo, o que de potencialmente destruidor ou de algum modo (humana, social ou economicamente) lesivo a partir da passagem deste ciclone perdurará para os moçambicanos.

Como funestos exemplos, para já, a doença (malária e cólera são exemplos graves, com muitos casos já identificados) potenciada pelas águas contaminadas e pela dificuldade de acesso a cuidados de saúde adequados em tempo útil e as consequências de sofrimentos de vária natureza, mormente em pessoas mais vulneráveis. Ou em condição mais vulnerável, como é o caso, por exemplo das crianças e mulheres grávidas (entre as pessoas de algum modo atingidas pelo ciclone, estão pelo menos 67.000 mulheres grávidas, das quais 3.000 poderão estar em risco de vida por falta de resposta às consequências da gravidez decorrente dos efeitos do ciclone).

Aliás, a vulnerabilidade económica e social em Moçambique já era patente antes do ciclone: 46,1% das pessoas vivem abaixo do limiar oficial de pobreza, 24,5% de desemprego (dados da ONU referentes ao ano de 2017), sendo, portanto, um dos países que menos capacidade estrutural de resposta (económica, técnica, institucional, social...) tem perante a desestabilização causada por fenómenos desta gravidade.

Alguns dirão que a explicação para tal grau de destruição está “só” justamente nisto, na estrutural vulnerabilidade económica e social do país e no “natural” comportamento da Natureza.

 

Mas, (também) em Moçambique, há outra forma de ver as coisas ...

Desde logo, não obstante quase 44 anos passados após a proclamação da independência (25/6/1975), está ainda ali muito do que (não) fez o colonialismo: só sugar as riquezas e não desenvolver economicamente (e, daí, muito menos, humana e socialmente), bem pelo contrário, de modo a criar condições de uma maior capacidade material económica, social e humana de resistência a catástrofes naturais. “Naturais”?

Depois, há que perguntar até que forma tais fenómenos são assim tão “naturais” e habituais, como insistem em dizer os negacionistas dos dados científicos relativos ao impacto das alterações climáticas no frágil equilíbrio da biodiversidade local, regional e global.

“O Idai já se inscreve na tendência global das alterações climáticas, em que se observa um aumento de frequência e de intensidade deste tipo de fenómenos”. Cito, aqui, como poderia citar muitos outros, o investigador científico Pedro Garrett, envolvido no Programa Doutoral em Alterações Climáticas e Desenvolvimento Sustentável, coordenado , na Universidade de Lisboa, pelo professor Filipe Duarte Santos.i

Sim, também no sofrimento dos moçambicanos agora com este ciclone, está, afinal, muito do que já (não) fez e continua a (não) fazer a acção ou omissão humana. E, concretamente, a (in)acção provocada pelos indústrias, empresas e países mais poluidores do mundo, que, sob o “manto diáfano” do “crescimento” (e até do “desenvolvimento” de serem considerados “desenvolvidos”), são, afinal, os mais responsáveis pelo aquecimento global e, daí, pelas alterações climáticas, cujas consequências a ciência garante nelas estarem patentes.

 

Assim, tem razão o escritor angolano José Eduardo Agualusa quando afirma que “o que a comunidade internacional está a fazer em Moçambique não é ajudar, é indemnizar por danos causados”, na medida em que “os países que mais contribuem para o aquecimento global devem responder pelos estragos causados ao planeta”. “Têm a obrigação de reparar o que fizeram”. Sobretudo quando atingem os países que menos fizeram por isso, como é o caso de Moçambique, que não contribui para o aquecimento global, já que, praticamente, não tem indústria nem agricultura.”ii.

De facto, tarda que haja honestida e coragem dos poderes políticos para responsabilizarem os mentores, mandantes e actores das opções de produção e mercantilização (o quê, com quê, como, para quê, para quem, onde, quanto ...?) que desprezam as consequências (humanas, ambientais, sociais, até económicas), directas ou ndirectas, imediatas ou diferidas, dessas opções e acções para os trabalhadores, para o ambiente, para as pessoas, para as comunidades, para os países, para o mundo, enfim, para a sociedade.

Entretanto, reconheça-se, para além de a acção, para eles possível, dos próprios moçambicanos, o envolvimento solidário da comunidade internacional, por iniciativa própriaou pelo apelo oficial da ONU, bem como de organizações não governamentais, na ajuda humanitária, agora, aos moçambicanos.

Conjugando meios, capacidades e objectivos, desde o salvamento de pessoas em risco ao enterro dos cadáveres (frise-se a dramática dificuldade nisto por, muitas vezes, não haver o suficiente de terra seca para o fazer), passando pelo tratamento de feridos e doentes, bem como pela assistência obstetrícia e materno infantil e pela vacinação em massa perante a ameaça crescente de epidemias (com destaque para a cólera).

Portugal, como país irmão de Moçambique (no mínimo, pela língua comum , mas muito mais do que por isso), teve e continua a ter lá um papel (e responsabilidade) relevante de solidariedade, quer a nível oficial (bastaria o contributo das Forças Armadas), quer não oficial, pelo papel das ONG (em que se destaca a Cruz Vermelha Portuguesa) e, mesmo, da solidariedade de voluntários(as), ao nível individual ou organizacional, por mais diminuta que fosse.

 

E é justamente por isto que volto à frase que inicia este texto, cujo autoria é atribuída ao escritor e poeta moçambicano, Mia Coutoiii.

Interpreto esta frase (e penso que Mia Couto não discordará deste sentido) como: se um país (o) é de muitos homens, um homem é de muitos países.

A expressão concreta da frase (e será esse o que, genuinamente, lhe terá conferido o seu autor) consubstancia-se particularmente, sim, no caso dos emigrantes e refugiados.

Mas também se aplica aos que, habitantes do país de destino desses emigrantes ou refugiados, os quais, ao acolherem-nos, passam a ser dos países de origem, de onde emigram ou fogem, esses emigrantes ou refugiados.

E também aos que, sensíveis ao sofrimento decorrente das provações que, em qualquer país, outros sofrem, passam a ser (também) desses países quando, dos seus próprios, solidários, para aqueles se deslocam em acções humanitárias de apoio nessas provações dos outros. Ou até “só” quando, de longe, contribuem com donativos (o que também foi muito o caso dos portugueses) para minorar esse sofrimento dos outros, noutros países que não o seu.

Especialmente neste último caso (se bem que, de algum modo, também nos anteriores), é justamente o que agora se passa com a ajuda humanitária a (para) Moçambique de “muitos homens e países”. Relevando ser essa ajuda humanitária económica e politicamente desinteressada de tudo o que não sejam (de novo) as condições de saúde e de vida dos moçambicanos.

E por isso (mas também, em geral, pelo civismo das suas posições públicas e pela beleza, sensibilidade, poesiaiv e humanidade da sua escrita), presumo que Mia Couto não me desautoriza nestes (outros) sentidos que, talvez abusivamente, confiro aquela sua citação: “Se um país tem muitos homens, um homem tem muitos países.”

Aliás, penso que Mia Couto não considerará tão abusivo como isso este (outro) sentido que atribuo aquela sua frase, visto que ele próprio, sobre este sofrimento humano na sua terra natal, para além de destacar o quanto lhe induz “esperança” a reacção dos seus próprios conterrâneos na reconstrução das suas vidas (“Moçambique tem uma história longa de coisas que são menos boas, mas sempre houve esta escola de resposta a partir de dentro, Moçambique foi solidário com Moçambique”v), entende a ajuda internacional ao seu país como “uma renovação daquilo que nos liga profundamente, para além da distância, para além das diferenças.” Algo “que nos faz pensar que nós realmente vivemos e somos gente que é próxima e cuja dor nunca é alheia, nunca é de um outro.”vi

O presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, Dr. Francisco George, a propósito da notável acção humanitária que esta organização também teve (tem) em Moçambique, diz mais ou menos a mesma coisa, por outras (menos) palavras: “A distância geográfica quase que desapareceu. A proximidade impunha-se, naturalmente.”vii

Moçambique, um país que, como outros no mundo, tem sido de muitos homens e de muitos países. No sentido, perverso, de que, pela acção (ou, por outro ponto de vista, pela omissão) mercantil, industrial, económica, política, desses homens e países, pelo quanto tal (in)acção tem sido desumanizada pelo afã do poder, do lucro e do consumismo, se torna insensível às suas consequências quanto a sofrimento dos outros.

Mas, também, pelo menos agora, Moçambique, um país que é de muitos homens e de muitos países no sentido, humana e socialmente solidário, de quanto, como é devido aos moçambicanos, ajudado pela acção humanitária desses muitos homens e países.


Notas:

iii António Emílio Leite Couto (Beira, Moçambique, 5 de Julho de 1955)

iv “Sem poesia não há humanidade”, escreveu Teixeira de Pascoaes

v Entrevista à ONU News, 1/4/2019 - https://news.un.org/pt/story/2019/04/1666481

vi Idem

vii Expresso, 6/4/2019

Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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