Mitos eleitorais (1)

porJorge Martins

19 de setembro 2015 - 6:42
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Para a criação de uma bipolarização artificial, a coligação de direita (PàF) e o PS usam diversos meios: diretamente, através de apelos ao “voto (in)útil”, ou subliminarmente, através dos órgãos de informação.

A menos de um mês das eleições legislativas, os partidos do sistema, com o apoio interessado da maioria da comunicação social, tentam manipular a opinião pública, procurando mostrar que, no ato eleitoral que se avizinha, há apenas duas alternativas que contam: a coligação de direita (PàF) e o PS.

Para a criação de uma bipolarização artificial, aquelas forças políticas usam diversos meios: diretamente, através de apelos ao “voto (in)útil”, ou subliminarmente, através dos órgãos de informação. Neste último caso, vão desde a maior atenção mediática dada aos respetivos líderes até aos títulos que falam em “empate técnico”, frequentemente legitimados por sondagens que, ou são pouco credíveis ou são apresentadas de forma conveniente para servir esse objetivo (e refiro-me, por exemplo, à forma de distribuição dos indecisos).

Mas essa campanha insidiosa assenta, frequentemente, no desconhecimento da maioria dos cidadãos relativamente ao sistema político e eleitoral, criando aquilo a que denomino “mitos eleitorais”. De entre estes, há dois que estão bastante arreigados. São estes que, neste e noutro artigo, vou tentar desconstruir:

1º mito) A força política mais votada nas eleições indica, obrigatoriamente, o primeiro-ministro.

De acordo com a Constituição (artº 187º, 1), “o primeiro-ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais”. Estamos, assim, em presença de uma formulação suficientemente ambígua, que dá ao PR alguma liberdade na nomeação do chefe do governo.

É certo que, desde 1976, data das primeiras eleições legislativas, o líder do partido ou coligação com mais votos foi sempre nomeado para formar governo após as eleições. Mesmo as exceções a essa regra (os três governos de iniciativa presidencial de Ramalho Eanes, em 1978 e 1979) ocorreram depois da queda do governo chefiado por Mário Soares e num tempo em que o executivo era politicamente responsável, não apenas ante a AR, mas também ante o PR.

Contudo, isso verificou-se apenas porque os PM nomeados conseguiram fazer “passar” os seus governos no Parlamento. Nos termos constitucionais, durante o debate para a aprovação do programa do governo, “pode qualquer grupo parlamentar propor a rejeição do programa ou o Governo solicitar a aprovação de um voto de confiança” (artº 192º, 3), sendo que “a rejeição do programa do governo exige maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções” (artº 192º, 4).

Como a apresentação da moção de confiança não é obrigatória, para que o governo passe apenas é necessário que a oposição não consiga fazer aprovar uma moção de rejeição. Estando a aprovação desta condicionada ao voto da maioria absoluta dos deputados eleitos, ela só ocorrerá se todas ou a esmagadora maioria das forças oposicionistas se unirem para o derrubar. Por isso, basta que alguma(s) delas se abstenha(m) para permitir a “passagem” do executivo. Na prática, esta disposição visa facilitar a formação de governos minoritários, algo que já ocorreu após as eleições de 1976, 1995, 1999 (empate governo-oposição) e 2009 com o PS e em 1985 com o PSD.

Vamos, então, imaginar este cenário pós-eleitoral: a PàF era a mais votada com 35%, ficando o PS com 34%; por seu turno, as forças de esquerda com representação parlamentar (em princípio, CDU e BE) obtinham, no conjunto, 18% e o partido de Marinho Pinto 3%. Os restantes 10% iriam para outros, brancos ou nulos.

Tendo a PàF ficado à frente, Cavaco nomearia o seu líder, Passos Coelho, para formar governo. Mas, no Parlamento, apenas Marinho Pinto se disporia a apoiá-lo. Bastava um ou ambos os partidos da esquerda apresentarem uma moção de rejeição e o PS votar a favor dela para que Passos não conseguisse fazer “passar” a sua nova equipa governamental.

Claro que Cavaco poderia tentar convencer os socialistas a entrar num executivo de “bloco central”, mas se António Costa se mantivesse firme na recusa de alianças com a direita, restaria ao PR (mesmo que a contragosto) chamá-lo para constituir um novo executivo, na qualidade de líder da segunda força mais votada. Isto porque o atual chefe de Estado, por se encontrar nos últimos seis meses de mandato, perdeu o poder de dissolver a AR. Então, mesmo que PSD e/ou CDS propusessem a sua rejeição, bastaria que BE, PCP e PEV se abstivessem para viabilizar esse governo.

Como se pode ver, para “derrotar a direita” ou “correr com o Passos e com o Portas” não é necessário qualquer “voto (in)útil” no PS. Basta que a coligação direitista (e os seus potenciais parceiros) fique em minoria na AR para isso acontecer.

Por isso, a ideia que a comunicação social anda a vender, de que as eleições serão um combate titânico entre a PàF e o PS e que o “vencedor” formará governo, não é exata. Aliás, se olharmos para outros países europeus, a situação de a força política mais votada não conseguir formar governo e passar à oposição, é mais frequente do que se imagina.

Claro que António Costa e o seu partido poderão, mais uma vez, “roer a corda” à esquerda e alinhar com a direita. Mas, se isso acontecer, as responsabilidades por essa escolha caberão ao PS. E este terá de as assumir!

Jorge Martins
Sobre o/a autor(a)

Jorge Martins

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra
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