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A mentira e a repressão como engenhos de um golpe de regime

A política de austeridade não é mera causadora de desmandos avulsos, é a aplicação de um projeto em curso de engenharia social que pretende instaurar uma nova/velha sociedade em regiões do mundo onde foi duramente atingida - vastas zonas do espaço que hoje se designa União Europeia.

Há situações no mundo em que o insólito se torna tão óbvio, as explicações oficiais se revelam tão absurdas e a irresponsabilidade de comportamento dos que manejam as mais elevadas responsabilidades se afirma de modo tão evidente que somos forçados a interrogar-nos e a esquadrinhar explicações, a perscrutar em frente, a juntar as peças. Façamo-lo então.

Não é possível acreditar e aceitar que dirigentes dos mais influentes no mundo insistam com tanta convicção e teimosia em soluções erradas para problemas sérios e danosos que atingem milhões de pessoas por serem políticos desastrados e incompetentes. Até os mais asnos e desajustados que eventualmente existam nessa elite já tiveram tempo e observaram provas suficientes para perceberem que algumas políticas apresentadas como panaceias milagrosas funcionam exatamente ao contrário em relação aos objetivos com que continuam a ser aplicadas.

Muitos leitores já perceberam que o caso mais flagrante de tão crua dissociação entre o problema e a solução é o das dívidas soberanas que afeta, em alguns países mais do que noutros mas de maneira cada vez mais generalizada, a União Europeia e sobretudo o seu núcleo duro, a zona do euro como moeda única.

Peguemos no exemplo que tem maior atualidade em números revelados e também em acontecimentos subsequentes, o de Espanha. A política de austeridade contra a classe média e, sobretudo, os setores mais desfavorecidos da sociedade, tem vindo a ser a resposta única adotada inicialmente pelo governo socialista de Zapatero e depois agravada pelo executivo pós-franquista de Rajoy para combater a dívida pública e respetivas degenerescências económicas e financeiras.

Política de austeridade significa, como muitos sabem mas nunca será excessivo repeti-lo, cortes salariais e de pensões sociais, eliminação de subsídios que são direitos adquiridos pelas populações, devastação dos direitos laborais devido à alegada necessidade de recuperar a economia através da "liberalização do mercado de trabalho", desmantelamento das administrações públicas, agravamento brutal de impostos, sobretudo dos mais injustos como o IVA e o de rendimentos (sabendo-se que a evasão é um exclusivo das camadas económicas poderosas), ataques a sectores como os da saúde e da educação que deixam as pessoas ainda mais vulneráveis.

Escutando discursos atuais e recordando declarações proferidas por políticos que nos últimos três anos ocuparam ou ocupam cargos de governo em países como Espanha, Portugal, Grécia, Itália, Alemanha, Irlanda e muitos outros ficamos a saber que a política de austeridade é o único caminho que conhecem para reanimar a economia, criar emprego, combater a dívida pública, restaurar o crescimento económico. Disseram-no há anos, continuam a afirmá-lo.

Olhemos então os mais recentes resultados da política de austeridade em Espanha, aplicada na sua versão mais cruel nos últimos 14 meses e crudelíssima nos últimos sete: dívida soberana superior a 800 mil milhões de euros, a maior de sempre no país em termos absolutos, o recorde da dívida em percentagem de PIB dos últimos cem anos; desemprego com a taxa mais elevada nas últimas décadas – a rondar os 25 por cento, 54 por cento entre os jovens; recessão económica a aprofundar-se cada vez mais. A velocidade do crescimento da dívida está mesmo a aumentar e atingiu quatro por cento entre o primeiro e o segundo trimestre deste ano.

A política de austeridade, longe de funcionar como solução, tornou-se o fator determinante de agravamento dos problemas diagnosticados. É isso que os números e os cidadãos espanhóis nos gritam.

Poderíamos pensar, ingénuos que fôssemos, que os políticos responsáveis por este quadro se enganaram, pelo que seriam incompetentes, desastrados, péssimos dirigentes.

Por muito que assim fosse, é impossível acreditar que tantos e tão importantes políticos estejam a enganar-se há mais de três anos sem procurarem aplicar soluções alternativas. Sejamos diretos, os principais políticos europeus, desde as instituições centrais da União aos dirigentes de grandes potências e aos das nações afogadas pela dívida e a recessão, mentem. E mentem deliberadamente.

A mentira é evidente e grave, não é oca, não existe por si mesma. Tem objetivos. E – olhemos ainda o caso de Espanha, como podemos recordar o da Grécia – quando não convence a bem tendo a impor-se a mal, o que começa a tornar-se cada vez mais evidente

Objetivos que, de maneira avulsa, revelam o cariz anti-cidadania, anti-democracia, anti-social, anti-trabalhadores do que está a acontecer e que se reproduz em aumento da pobreza, alastramento da miséria, aprofundamento das desigualdades sociais e também, cada vez mais, recorrendo ao autoritarismo e ao seu braço histórico, a repressão através da violência.

Vamos então ao fundo do raciocínio. A política de austeridade não é mera causadora de desmandos avulsos, é a aplicação de um projeto em curso de engenharia social que pretende instaurar, de facto, uma nova/velha sociedade em regiões do mundo onde foi duramente atingida - vastas zonas do espaço que hoje se designa União Europeia. Uma nova/velha sociedade de cidadãos indefesos, sem direitos, prontos a agradecer o trabalho como uma benesse dos amos, multidões servos à mercê daqueles para quem o dinheiro nunca chega.

A mentira é o instrumento mais usado para nivelar por baixo a vida dos cidadãos, neste caso para re-instaurar na Europa um regime igual ao de regiões do globo onde ainda não chegaram os mais elementares direitos de cidadania, de trabalho, humanos. Então sim, já não será preciso fazer deslocalizações de empresas em busca do lucro máximo garantido pela exploração absoluta.

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Jornalista
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