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Mário Ruivo, 1927-2017

Trabalhei com Mário Ruivo, quero deixar aqui o testemunho de um encontro decisivo para a minha vida profissional que, então, mal começava.

Madrugada de 11 de Março de 1975, sede do MES ali na Avenida D. Carlos, a Santos. Enquanto se pesava a força das diferentes esquerdas, na sede do MES conversei boa parte da noite com um companheiro que eu desconhecia em absoluto. Para além da situação política, claro, falámos das nossas respetivas atividades profissionais. Mais eu que ele. Lamentei-me da monotonia das minhas tarefas que me transformavam em guarda-livros em vez de bibliotecária. E disse-lhe do meu sonho de trabalhar numa biblioteca cuja temática fosse o mar nas suas variadas vertentes. Tal qual aquela que se projetava agora (tinha lido nos jornais)e havia sido anunciada pelo Secretário de Estado das Pescas mas, acrescentava eu, isso era uma quimera. No dia seguinte, estava eu naquele departamento desinteressante, tocou o telefone, atendi. Olá, lembras-te de mim? Estivemos ontem a falar da biblioteca sobre assuntos do mar... sim? Pois, eu sou chefe de gabinete do Secretário de Estado, ele anda à procura de alguém para a biblioteca, referi a tua pessoa e ele quer falar contigo, hoje, lá para o fim da tarde. Titubeei, em vão, a entrevista estava marcada.

Nunca tinha visto ou conhecido um membro do governo mas este meu primeiro contacto foi muito afável e vim daquele gabinete muito impressionada. Mário Ruivo não me recebeu com distância, quis saber das minhas qualificações, da minha prática (na altura quase nenhuma), o que me causava tamanho gosto e interesse pelo mar. O gabinete tinha o equipamento mínimo indispensável e por trás da sua cadeira ergonómica estava pendurada uma serigrafia do Nikias. Só mais tarde soube da proximidade dele com o artista. Um gabinete que não cheirava a passado como os que eu conhecia nos departamentos da administração central.

Passaram-se talvez uns três meses e nada. Desiludida, fiz por esquecer. Mas de novo, o telefone a chamar. Olha, sou eu outra vez, lembras-te? Vou ler-te o despacho da tua nomeação como bibliotecária chefe... assinado pelo Secretário de Estado. Mas eu não disse se aceitava, balbuciei. Ah, pois é, mas o Dr. Mário Ruivo gostou da entrevista e, portanto, nomeou-te e como vai para Roma, deixou o papel assinado. Começas no dia 1 de agosto. Depois acertamos.

Comecei de facto a 1 de agosto de 1975, na vigência do V Governo, com Mário Ruivo na pasta do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Entre as minhas férias e a vida atribulada do V Governo, não tive nenhum contacto com Mário Ruivo. O trabalho com Mário Ruivo veio depois (talvez setembro, não me lembro) mas neste intervalo de tempo fui testemunhando a transformação que ele tinha introduzido no setor das pescas, nomeadamente com o projeto de estrutura informativa de carácter científico. Sem hesitações, Mário Ruivo encarregara-se de desmantelar a estrutura corporativa erguida em torno de Henrique Tenreiro, o “patrão das pescas”, senhor poderoso do antigo regime. As várias organizações corporativas ligadas às pescas, e nas quais Tenreiro mandava diretamente ou por interposta pessoa, dispunham todas de núcleos bibliográficos mais ou menos desenvolvidos. Camião após camião, chegavam ao edifício de Algés destinado para a investigação no sector do mar e das pescas ainda em construção, carregados de livros, revistas, relatórios. Muita documentação, demasiada publicação corporativa, bem representativa do Estado Novo. Literalmente, ao monte. Tudo atirado para uma pilha que ia até ao teto. Publicações, ficheiros, fichas, algum equipamento. Eu era suposta pensar como resolver aquela situação. Escapavam a esta amálgama um ou dois departamentos de verdadeiro cariz científico e que Mário Ruivo respeitava e estimava.

Quando ele regressou às pescas, chegou como Diretor Geral e decidido a implementar o que havia gizado enquanto Secretário de Estado. Foi nesse período que trabalhei diretamente com ele. Mário Ruivo valorizava sobremaneira a informação científica (uma valência aprendida na FAO) e, portanto, queria montar uma infraestrutura global e abrangente que deveria tornar-se um instrumento indispensável à investigação que o mar e as pescas reclamavam. Comigo visitávamos os espaços do novo edifício e perguntava-me o que é que eu queria, como queria, quando queria. Íamos falando, reservando espaços, destinando os gabinetes, imaginando a colocação do equipamento. Ele ia registando mentalmente e gravando para depois entregar à secretária e concretizar em despachos. Estas visitas de trabalho eram muito eficazes e eficientes; os resultados tornavam-se palpáveis, sentia-se a mudança. Não desperdicei nem uma das oportunidades que me oferecia. A Mário Ruivo nem interessava o passado, nem os rodriguinhos da administração. Era sempre o amanhã, uma construção em marcha, uma visão política da missão daquele instituto, o seu papel central num país com uma ZEE gigantesca. Ao longo dos anos posteriores tive esporadicamente contacto com ele e a atitude mantinha-se. Sempre a pensar no futuro e na melhor forma de lá chegar.

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Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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