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Marcelolar, por aí

O recorde de participação popular na eleição da palavra do ano é bem demonstrativo da importância da definição-síntese dos 365 dias.

Na impossibilidade, tenta-se: o ano foi assim, assim foi o ano de. Como um porta-chaves simbólico ou aquele íman de frigorífico à laia de lembrete. E em cada ano novo, no cadafalso dos 365 que se seguem, partimos à aventura, remamos contra a maré e inventamos um novo sentido. Desde sempre. No princípio era o verbo e, entre qualquer princípio e fim, existe Marcelo. Omnipresente. Com superpoderes e ubiquidade. É uma palavra que nasce, reforçada pelo telefonema matinal, porta de entrada do programa-casa de Cristina. "Marcelolar", o verbo.

"Marcelolar" é um verbo com inúmeras conjugações. Para além da tentação de vender um irresistível pacote fixo-móvel de presidente+telefone+casa (braço dado com o programa da manhã da SIC e com a história de Rangel sobre uma televisão que tanto vende sabonetes como presidentes), "marcelolar" é um verbo-protótipo de intervenção pública com décadas de história. Cada vez que for impossível resistir à presença num acontecimento irrelevante, poderemos dizer que estamos a marcelolar. Perante a fúria e ímpeto que nos impele a conseguir estar, sem aparente esforço, em dois lugares diametralmente opostos, estaremos - com toda a propriedade - marcelolando. Ao esperar pelo momento certo para desferir com inteligência um ataque mortal, parecendo que cobiçamos um balão colorido para as mãos de uma criança, o que fazemos sem dúvida? Marcelolamos. Ao trabalhar incessantemente e com gosto, sem cuidar de distinguir o essencial do acessório só-por-que-po-de-mos, que fazemos nós? Marcelolamos, justamente. E quando somos distintamente distintos do nosso antecessor, comparação que assim nos permite tirar a bissetriz à dignidade intrínseca a um cargo de Estado da maior importância? É esse mesmo verbo, certo.

A década de 80 teve muitos finais felizes, ao contrário do que tantos cortes de cabelo poderiam fazer supor. "Surrealizar, por aí", cantavam os BAN no seu magnífico "Irreal Social" de 88, dois anos antes de Marcelo Rebelo de Sousa concorrer à Câmara Municipal de Lisboa, perdendo para Jorge Sampaio. Por falar numa figura de Estado. A indignação por um telefonema de 109 segundos de um PR para um programa da manhã indignou meio país. Mas é ele o dono desta ligação que foi construída com o beneplácito manso e acrítico de quem estava intrinsecamente farto de amantes de bolo-rei. Antes o café da manhã de um "workaholic", sem que venha nenhum mal ao Mundo. Até pode parecer surreal, mas menos se for com Obama. Se é o presidente de todos os portugueses e se todos os portugueses somos nós, porque não marcelolamos todos como é suposto? Marcelolemos, então.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 11 de janeiro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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