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Manual de auto-ajuda

A responsabilidade de nomeação não pode morrer solteira, nem deve dar entrada nos cuidados paliativos, caucionada por um estado policial que mine a separação de poderes.

O exercício da memória, recordações como elementos distintivos do ser humano, não se aplica a todo o tipo de sonhos e pesadelos. A fazer fé no que António Costa defende, convocar a memória em grelha-inquérito, só mesmo para candidatos. A não aplicação do questionário de escrutínio aos actuais governantes é, a todos os títulos, injustificável, sobretudo se atendermos às razões que presidiram à sua criação.

Marcelo Rebelo de Sousa considera que esse é um debate que não deve ocupar-nos um minuto sequer: "é óbvio que se aplica", assegura. Rejeitar a aplicação do inquérito ao actual Governo é uma dupla prova de ineficácia, pelo que sublinha sobre a sua ineficácia e pelo que demonstra sobre a sua irrelevância.

Melhor do que nada e antes assim, dirão os optimistas, para quem o questionário cumprirá o desígnio de se erguer como um reforçado grau de aviso à nova navegação. Quem vier será confrontado com "highlights" hipotéticos sobre a vida passada, "post-it" em branco onde se inscrevem acções duvidosas ou alvos e higiénicos nadas. São um passeio pela revisão da memória, iluminado por aquilo que a governação entende serem as questões dominantes e suficientes para governar. A ser assim, não se entende que os optimistas não procurem, eles mesmos, adjudicar para si o julgamento de higienização que agora pretendem impor aos outros. A salvaguarda da confiança dos cidadãos nos seus eleitos é um bem escasso e exige respeito pela universalidade dos meios escolhidos para a defender. Mal seria se uma regra de autopreservação democrática não se aplicasse a todos.

A infelicidade está também no contexto. O questionário aparece como reacção à tensão e, perante os casos sucessivos de admissões e demissões no Governo, como mecanismo de fuga para a pressão exercida pela opinião pública. Nasce desenquadrado de uma política mais vasta de transparência no acesso a cargos públicos, de regulamentação do lóbi, fim das portas giratórias e do combate às incompatibilidades e à corrupção. Sozinho e sem a amplitude de intervenção na qual se devia inserir, parece casuístico, solteiro de companhia mas acompanhado de culpa.

O anunciado mecanismo interno de avaliação prévia falhou na tentativa de vincular o presidente da República e na instigação ao envolvimento do Ministério Público e do Tribunal Constitucional. A responsabilidade de nomeação não pode morrer solteira, nem deve dar entrada nos cuidados paliativos, caucionada por um estado policial que mine a separação de poderes. Independentemente de ser um manual de autoconhecimento, inquérito de boas práticas com ganhos de transparência, não esperemos dele rigor ou ciência. Mas se é um manual de auto-ajuda, elucidação e consciência em causa própria, pelo menos que não fujam dele.

Artigo publicado no “Jornal deNotícias” a 20 de janeiro de 2023

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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