Está aqui

Manifesto milionário pelo pobre eucalipto

Nas folhas de publicidade dos principais jornais do país foi publicado um um manifesto pelo eucalipto, algo que até agora ainda não tinha surgido na sociedade portuguesa.

Nas folhas de publicidade dos principais jornais do país foi publicado um texto na semana passada, ocupando três longas páginas, intitulado “Manifesto por uma Floresta Não Discriminada”. O nome era subtil para aquilo que o texto era cabalmente: um manifesto pelo eucalipto, algo que até agora ainda não tinha surgido na sociedade portuguesa (apesar dos inúmeros manifestos pela floresta, pela biodiversidade, pelas florestas, pelo futuro das áreas rurais, pelo mundo rural, etc..). A questão principal é que até hoje os sectores ligados à produção de pasta de papel, que vivem da gigantesca área de eucalipto que existe em Portugal (consumindo árvores quer das áreas geridas, quer das áreas não geridas), nunca tinham sentido qualquer necessidade de defender o seu catastrófico modelo de negócio. Catastrófico para o conjunto da sociedade, note-se bem, e não para os próprios, obviamente.

Os argumentos invocados no manifesto, apesar de virem com uma série de novos nomes a subscrevê-los, não apresentam qualquer novidade no debate público: que matos e pinheiros-bravos arderam mais do que eucaliptos no período entre 2003 e 2017 (sendo que ninguém planta matos, que os pinheiros-bravos estão em declínio acentuado e que o eucalipto só passou a ser oficialmente a espécie que ocupa maior área no território desde 2010, pelo que estranho seria que tivesse ardido muito mais quando ocupava áreas muito menores); e que há cada vez mais incêndios no mundo, e inclusivamente (pasme-se!), ocorrem em áreas florestais onde há pouco eucalipto (que nos dá apenas uma informação: à escala global há mais condições para incêndios - a temperatura está mais elevada, chamam-se alterações climáticas).

O manifesto depois cita três frases do relatório da Comissão Técnica Independente dos incêndios de Pedrógão Grande e Góis, relativas à importância ou não do eucalipto na maior propagação e o seu controlo na redução dos incêndios. As frases escolhidas para o manifesto são pouco conclusivas, e outras poderiam ter sido usadas dos relatórios, como por exemplo:

“Espaços florestais contínuos e, no caso em análise, ocupados predominantemente por monoculturas de eucalipto e pinheiro bravo não sujeitas a gestão adequada face ao risco de incêndio que representam, geram incêndios grandes e severos. A alteração do coberto florestal no sentido da maior expressão de tipos florestais menos propensos ao fogo, mitigando os seus impactes, ou alterando os seus padrões de propagação e intensidade e proporcionando oportunidades de sucesso para as operações de combate podem constituir a longo prazo uma resposta de raiz ao problema dos incêndios florestais.” (p. 149)

“E sabemos que o Eucalipto (Eucalyptus globulus) nas mesmas condições, para além da maior intensidade dos incêndios pela existência de concentrações muito significativas de compostos voláteis facilmente combustíveis nas suas folhas, tem também a característica de projetar focos de incêndio secundários a grandes distâncias, em particular pelo facto de ter uma casca que nos períodos de maior seca e calor se destaca e enrola podendo arder durante largos minutos. Na Austrália há registos de focos secundários a 20 quilómetros da frente de fogo original... E manchas contínuas de misturas das duas espécies, pinheiro e eucalipto, infelizmente comuns em situações de gestão deficiente, é a receita, mais cedo ou mais tarde, para o desastre.” (p. 163)

A escolha criteriosa de frases que confirmam a tese do lobby da celulose, aos invés de outras, coincide com o facto de apenas um membro da Comissão Técnica Independente ter assinado o manifesto.

Este manifesto caricatura o debate que começou há décadas na sociedade portuguesa, mas que se acentuou com o agravamento dos incêndios florestais. Esse debate tem-se feito à volta do combate e prevenção dos incêndios rurais e florestais, da gestão, do abandono, das alterações climáticas. O que o lobby da celulose deixa claro é que não aceita que - no meio de todas estas questões - o eucalipto possa sequer ser abordado. E por isso invoca uma “perseguição” ao eucalipto, que não existe.

O manifesto diz-nos que é totalmente inadmissível que se possa discutir o impacto de ter uma espécie exótica, sem qualquer selecção que evite a sua combustão rápida, a ocupar 10% do território nacional num país altamente atreito a incêndios florestais (tal como os seus vizinhos mediterrânicos).

Existe um binómio entre o eucalipto e o abandono. Quanto mais eucalipto, mais abandono e quanto mais abandono, mais eucalipto. Não se pode imputar o êxodo rural ao eucalipto, mas invocar o rendimento do eucalipto como factor fixador de populações - como é feito no manifesto - é negar duas realidades medidas: o rendimento florestal é cada vez menor e a população rural também. O eucalipto não fixa populações, beneficia-se da sua ausência e, fruto da pouca necessidade de mão-de-obra envolvida na sua produção, o eucalipto é beneficiado pela falta de pessoas no meio rural. Não precisa de gente e aparenta criar rendimento, como cultura de abandono. Mas isto exclui todos os riscos da gestão de abandono - o mais visível dos quais o risco de incêndio.

Mais do que a árvore “eucalipto”, o que o lobby das celuloses defende é o modelo de negócio associado ao mesmo: ter à disposição, com baixíssimos encargos, quase um milhão de hectares de um país perto do centro da Europa, aproveitando-se de uma situação de propriedades atomizadas e abandono do meio rural (para o qual contribui), e não responder por qualquer risco associado a esta cultura de abandono.

O binómio entre o eucalipto e abandono encontrou os seus esteróides nas alterações climáticas, contribuindo para um trinómio que leva à simplificação da complexidade biológica e ecossistémica do território nacional. O impacto de extensas áreas de monocultura - geridas e não-geridas - é ainda um factor para degradação da água, dos solos, dos nutrientes e da biodiversidade. A cultura do eucalipto, mas principalmente o modelo de negócio associado à mesma, são um dos maiores promotores da desertificação e do despovoamento de Portugal.

E por isso mesmo é importante pensar não apenas em como chegámos a este “Pesadelo de Darwin”, mas sim olhar para o futuro. O Centro de Pesquisa LEAF, no Instituto Superior de Agronomia, produziu abundante informação acerca da adaptação bioclimática das espécies arbóreas ao território nacional. Diz-nos que Portugal tem aptidão para expandir sobreiros, azinheiras, alfarrobeiras, castanheiros e pinheiros-mansos, entre outros, à custa das áreas existentes de pinheiro-bravo (já em forte contracção) e de eucalipto. Isto é, se quisermos ter o mínimo de respeito pelas próprias condições da vegetação, dos solos, da humidade da temperatura, dos declives e orientações.

Devido às alterações climáticas as condições vão-se agravar. Para adaptarmos o território nacional às alterações climáticas precisamos de diversificação de espécies. Precisamos de discriminação positiva de espécies que nos darão coisas essenciais: água, solo, diversidade, resiliência, produção alimentar. As celuloses sabem disso e por isso batem-se pelos melhores solos do país.

A cultura do eucalipto compete directamente pelos solos que precisamos enquanto comunidades: compete contra a produção alimentar, substitui florestas mais biodiversas e fá-lo crescentemente a cada ano de grandes incêndios - por expansão natural e por plantação. E é por isso que foi escrito um manifesto milionário pelo pobre eucalipto. Não por causa do pobre eucalipto, mas sim para garantir que o modelo de negócio que permitiu criar esta monstruosidade industrial não é afectado por qualquer plano que procure garantir a viabilidade futura do nosso território nacional.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 19 de novembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Investigador em Alterações Climáticas. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
(...)