A luta de classes e as coisas do comer

porEsther Vivas

11 de novembro 2014 - 20:50
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Ricos e pobres comem o mesmo? Os nossos rendimentos determinam a nossa despensa? Hoje, quem são os gordos?

Apesar de com frequência, e em determinados âmbitos, se associar com desdém a aposta numa comida sã e saudável a “uma coisa” de “queques”, “hippies” ou “maria vai com as outras”, a realidade, como acontece com frequência, está muito longe dos comentários míopes. Defender uma alimentação ecológica, local e camponesa é “revolucionário”.

Se olharmos de perto para o modelo agroalimentar vemos como ele está determinado pelos interesses do capital, ou o que é o mesmo pelos interesses das grandes empresas do setor (agroindústria e supermercados), as quais fazem negócio com algo tão essencial como é a comida. O sistema capitalista, no seu caminho de transformar necessidades em mercadorias e direitos em privilégios, converteu os alimentos, e ainda mais aqueles de qualidade, em objetos de luxo. Do mesmo modo, fez da habitação um bem só acessível a quem possa, e o mesmo acontece com a saúde e a educação.

Ainda que não seja apenas a lógica do capital a afetar o modelo alimentar, pois a mão invisível do patriarcado move também os fios deste sistema. Senão, como se explica que aquelas que mais comida produzem, as mulheres, sejam as que passam mais fome? Não esqueçamos que entre 60% e 80% da produção de alimentos nos países do Sul, segundo dados da FAO, está nas mãos das mulheres, no entanto estas, paradoxalmente, são as que sofrem 60% da fome crónica global. A mulher trabalha a terra, mas não tem acesso à propriedade da terra, aos meios de produção, ao crédito agrícola. Eis a questão. Não se trata de ideologizar os discursos, mas de deixar claro a todos os que consideram que isto do “comer bem” é só coisa, como se diria em francês, de “bobos”, de “bourgeois bohème” (“esquerda caviar”), nada mais longe da realidade.

Se dermos resposta às perguntas iniciais, os dados confirmam a afirmação. Ricos e pobres comem o mesmo? Não. Os nossos rendimentos determinam a nossa despensa? Efetivamente. Um estudo da Plataforma de Afectados por la Hipoteca põe preto no branco: 45% dos atingidos pelos despejos tem dificuldade em comprar os alimentos necessários para comer. Os rendimentos económicos põem limites ao que adquirimos: diminui o consumo de carne de vaca e de peixe e, em relação ao período anterior à crise, o consumo de fruta e legumes. Em contraste, aumenta a aquisição de produtos menos nutritivos, altamente processados e ricos em calorias, como os doces embalados: bolachas, chocolates e sucedâneos, bolos e doces. A nossa classe social, formação e poder aquisitivo, determina o que comemos.

Então, hoje, quem são os gordos? Em geral, quem menos tem, e pior come. Olhando para o mapa da península fica claro: as comunidades autónomas com maiores índices de pobreza, como Andaluzia, Canárias, Castilla-La Mancha e Estremadura, concentram os números mais elevados de população com excesso de peso. Nos Estados Unidos, quem padece de maiores problemas de obesidade são as comunidades afroamericanas e latinas. A crise apenas acentua a diferença entre comida para ricos e comida para pobres.

Questionar o modelo agroalimentar dominante e apostar noutro antagónico ao anterior, que coloque no centro as necessidades das pessoas e o respeito pela terra, é pôr no centro a luta de classes. Os jornaleiros do Sindicato dos Operários do Campo (SOC) na Andaluzia, com Diego Cañamero e Juan Manuel Sánchez Gordillo à cabeça, dificilmente qualificáveis de “pequeno burgueses”, têm isso claro. O seu trabalho em defesa de um mundo rural vivo, da terra a quem a trabalha, a favor da agricultura ecológica, por outro modelo de consumo é um “combate” em defesa “daqueles que não têm nada”, dos oprimidos.

Apostar numa alimentação e numa agricultura local, saudável e camponesa, não haja dúvidas, é das coisas mais subversivas.

Artigo publicado em publico.es a 31 de outubro de 2014. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

Esther Vivas
Sobre o/a autor(a)

Esther Vivas

Ativista e investigadora em movimentos sociais e políticas agrícolas e alimentares. Licenciada em jornalismo e mestre em sociologia.
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