Está aqui

A longa marcha das marchas do orgulho

As marchas do orgulho, que acontecem este ano em mais de 20 cidades portuguesas, já trouxeram à rua dezenas de milhares de pessoas. Elas são, ao mesmo tempo, um sintoma do que mudou no país e um motor da transformação desse país que muda com as marchas.

São mais de vinte marchas LGBTQ+ em Portugal este ano. É impossível não considerá-las um dos grandes acontecimentos do presente. Às marchas de Lisboa e do Porto, com uma história mais antiga (a primeira estreou-se em 2000, a segunda em 2006, na sequência da morte de Gisberta), somam-se as de Sintra, Aveiro, Bragança, Faro, Guimarães, Coimbra, Ponta Delgada, Barcelos, Braga, Santarém, São João da Madeira, Leiria, Vizela, Funchal, Viseu e, pela primeira vez, Covilhã, Caldas da Rainha, Esposende, Setúbal, Famalicão. É um arco-íris que atravessa o país, com manifestações que são, em algumas localidades, as maiores desde o tempo do “Que se Lixe a Troika”, que em 2013 chegou a 40 cidades. Com uma diferença: são ainda mais marcadas pela presença juvenil e não são apenas, como aconteceu então, uma irrupção no espaço público em resposta a uma conjuntura política muito particular, mas um movimento contínuo, que todos os anos cresce em número de pessoas e na sua extensão territorial.

No dia em que este texto é publicado, assinala-se o aniversário da rebelião de Stonewall, o bar de Manhattan onde se juntavam gays, lésbicas, dragqueens, dragkings, trabalhadores do sexo, cuja repressão policial deu origem, em 28 de junho de 1969, a vários dias de motins e protestos de rua e à organização de espaços em que a população LGBT pudesse sentir-se segura. A data passou a ser, desde 1970, o dia do orgulho.

Este acontecimento fundacional do movimento, esta resposta coletiva à repressão, trouxe a experiência da dissidência sexual e das vivências LGBTQ+ para o espaço público e para o campo político. Em vez de um problema privado ou pessoal e de uma “aflição” para ser vivida em registo de sofrimento individual, a vergonha internalizada e a vivência escondida passaram a ser extirpadas através do reconhecimento de uma experiência coletiva de opressão, ressignificadas como identidades de resistência, assumidas com orgulho para serem identidades de luta. Que este caminho tenha começado, nestes termos, no final da década de 1960 não é um acaso. Foi nessa sequência histórica dos “longos anos sessenta” que explodiram também as lutas anticoloniais, o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, a segunda vaga do feminismo, a contracultura hippie e a revolução sexual, um ciclo de mobilizações estudantis (incluindo o maio de 1968), novos sujeitos coletivos que queriam politizar o quotidiano e contestar a alienação do “capitalismo tardio”. Foi também nessa década que, em vários países, o movimento da antipisquiatria fez o seu caminho, questionando profundamente a ordem biomédica e a utilização das categorias de “patológico” e de “normal” como formas de estigmatização, de controlo social e de repressão institucional.

Em Portugal, a revolta de Stonewall foi assinalada pela primeira vez apenas em 1995, por iniciativa do Grupo de Trabalho Homossexual do PSR, um coletivo nascido 4 anos antes. O encontro na discoteca Climacz, em Lisboa, foi notícia na imprensa e pode ser considerado um antecedente do primeiro Arraial Pride, que teve lugar em 1997, já a ILGA tinha nascido.

Não são dessa altura, claro, as primeiras manifestações de homossexualidade no espaço público. Décadas antes, durante o fascismo, escritores como Judith Teixeira ou António Botto tinham visto livros seus serem queimados por exporem publicamente “imoralidades”. Valentim de Barros, bailarino de sucesso internacional, estava internado no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, depois de submetido a uma lobotomia, sob o diagnóstico de “homossexualidade” (Egas Moniz, inventor dessa cirurgia ao cérebro, único português que foi Nobel da Medicina, em 1949, entendia que “a homossexualidade é uma doença tão digna de ser curada como as outras”). A repressão era múltipla, insidiosa e em muitos casos implacável.

A Revolução do 25 de abril abriu as portas, logo em maio desse ano, ao primeiro manifesto LGBT publicado nos jornais da época: “Liberdade para as Minorias Sexuais”, da autoria do recém-criado Movimento de Ação Homossexual Revolucionária. Uma das reações mais conhecidas a tal ousadia veio do general Galvão de Melo, da Junta de Salvação Nacional. “A revolução não foi feita para prostitutas e homossexuais”, declarou na televisão. Apesar do momento revolucionário, a profundidade do heteropatriarcado exibia-se de forma desabrida.

Até 1996, nota a investigadora Ana Cristina Santos, não há qualquer registo das palavras “homossexual”, “gay”, “lésbica”, “bissexual” ou “transgénero” nos debates do Parlamento. Só a partir desse ano, o movimento começa a ter as primeiras conquistas legais suscitadas diretamente pela sua ação. À aceleração dessas conquistas nos anos seguintes não é indiferente o nascimento, em 1999, do Bloco. Mas a chave deste armário deve ser encontrada sobretudo no fulgurante e rápido crescimento do próprio movimento. Foi o ativismo e a mobilização que arrancaram ao poder político um vasto leque de mudanças legislativas e de políticas públicas nos últimos vinte anos (uniões de facto, princípio de não discriminação na Constituição e no Código do Trabalho, casamento, adoção, lei da identidade de género, programas anti-discriminação, entre muitas outras) e que determinaram uma crescente visibilidade mediática e social que faz toda a diferença.

Na primeira marcha, em Lisboa, corria o ano de 2000, várias pessoas usavam uma máscara. “Não temos vergonha, mas temos motivos”, diziam, e a declaração era bem a expressão do peso da segregação de quem dava a cara, sobretudo se tivesse um enquadramento familiar ou uma condição de classe que restringisse ainda mais a sua autonomia. O que se avançou entretanto é impressionante, embora esteja muito longe do que é preciso. A LGBTQfobia e as suas múltiplas formas de violência continuam a marcar o quotidiano de milhares de pessoas, há uma nova onda de ódio conservador (e por isso de medo), em mais de 60 países a homossexualidade ainda é considerada um crime, os padrões da desigualdade de género resistem apesar das mudanças legais, a precarização da vida afeta sempre mais quem soma fatores de discriminação, a visibilidade das expressões LGBTQ+ está longe de ser representativa.

As marchas são contudo, provavelmente, o mais impressionante fenómeno de mobilização coletiva que hoje existe no país. Este ano, em que se assinala também a passagem de 4 décadas sobre a descriminalização da homossexualidade em Portugal, elas já trouxeram à rua larguíssimas dezenas de milhares de pessoas. Que outras causas são capazes de desencadear atualmente manifestações desta dimensão em mais de 20 cidades?

Para lá desse enraizamento no território, nomeadamente em lugares com pouca tradição contestatária, há ainda outros traços assinaláveis. As marchas são, na sua diversidade interna, intrinsecamente interseccionais, articulando agendas em lugar de as isolar, conjugando a luta pela liberdade com a luta contra todas as formas de opressão e de exploração. Elas têm sido queerizadas e são ao mesmo tempo cada vez mais políticas e cada vez mais festivas, por fazerem da celebração um protesto e da reivindicação política uma festa, por fazerem do fervor cultural uma afirmação coletiva e um encontro no espaço público. Continuam a juntar subjetividade e política, biografia e história, expressão individual e transformação coletiva, referências internacionais e reivindicações locais de reconhecimento e combate à discriminação. E são, sem dúvida, um exemplo de consistência: há 20 anos que não páram de crescer. Também por isso, são alvo de tentativas de neutralização política e de recuperação comercial, que até hoje não foram sucedidas.

A longa marcha das marchas do orgulho é, ao mesmo tempo, um sintoma do que mudou no país e um motor da transformação desse país que muda com as marchas. Também por isso é tão forte o seu poder de atração e a sua irreprimível alegria de luta.

Artigo publicado em expresso.pt a 28 de junho de 2022

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
(...)