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Livre, partido da alternância
Os promotores do Manifesto 3D propuseram uma coligação entre o Bloco de Esquerda e o partido Livre. As posições assumidas por Rui Tavares como eurodeputado deram forma ao programa do Livre e o congresso fundacional confirmou-as. É bom conhecer esta política para compreender a resposta do Bloco.
Quando Rui Tavares trocou de programa e integrou a bancada dos Verdes no parlamento europeu, escolheu o campo da alternância, uma família política que, pela ação de Cohn-Bendit ou Joshka Fisher em maiorias governamentais em França e na Alemanha, fez parte do pior que a Europa viveu nos últimos anos. Essa adesão levou Tavares a uma radical mudança de orientação, tendo chegado a aprovar um dos símbolos da política da austeridade - o visto prévio da Comissão Europeia sobre os orçamentos nacionais.
Nesse novo papel, Tavares juntou-se aos que têm atribuído aos partidos da esquerda anti-troika as responsabilidades pela rota direitista do PS. Se o PS chumbou centenas de propostas de esquerda em dezenas de anos no governo, quando estava na sua mão dar-lhes maioria, se o PS se orgulha do PEC4 e do apoio ao Tratado Orçamental, se diz que pagar a dívida é “questão de honra”, então, a culpa só pode ser da esquerda se opôs a essas medidas e assim “bloqueia” uma convergência...
Contra esse “bloqueio”, Tavares apontava como exemplo de abertura o partido grego Esquerda Democrática (Dimar), que um dia ocorreria em Portugal “se a ala esquerda do PS se aliasse aos bloquistas mais abertos”. A história é sabida: o Dimar juntou-se à direita e ao Pasok e meteu ministros no desastre. Até hoje, apoia o governo Samaras no parlamento. E Rui Tavares não se desdisse.
Não espanta por isso que o partido Livre, no seu texto fundador, se mantenha cautelosamente calado sobre temas que dividem águas na luta política em Portugal.
Tratado orçamental, o grande tabu
Ainda antes do seu congresso, o Livre tornou estatutária a garantia de que se “revê no espírito” da declaração do Congresso Democrático das Alternativas (CDA) de 5 de outubro de 2012. A declaração entrou nos estatutos e por ali ficou, em espírito, pois dela pouco sobrou nas dezenas de páginas aprovadas pelo Livre.
O Livre refere-se de forma genérica a um eventual processo de revisão dos tratados, mas nem menciona o Tratado Orçamental europeu, aprovado pelo PS, PSD e CDS, que será um verdadeiro memorando perpétuo sobre a despesa do Estado. Onde houve clareza do Congresso Democrático das Alternativas na defesa da “anulação” do Tratado, o Livre não diz uma palavra; onde o CDA colocou a “reposição dos cortes” salariais, o Livre limita-se a defender que “deve cessar o desproporcionado ataque” aos rendimentos do trabalho; onde o CDA defendeu “o controlo público de sectores estratégicos da economia, nomeadamente a banca”, o Livre admite que “a alienação de monopólios naturais deve ser travada”. Em vez de rejeitar “a estratégia da austeridade” como o CDA teve a coragem de fazer, o Livre deseja minorar os excessos da “austeridade obsessiva”... No fundo, tomando a declaração do CDA como referência, Rui Tavares propõe um ajustamento. Para governar com o PS, a esquerda tem de empobrecer o seu programa.
A clareza que falta quanto ao “espírito” da declaração do CDA, sobra em algumas inovações de gosto duvidoso. Uma delas é um benefício fiscal para os contribuintes mais abonados: aceitando antecipar o pagamento dos seus impostos futuros, estes contribuintes ricos teriam "um desconto". Outra proposta-surpresa é a criação de um "fundo soberano" (sic), como os do Qatar e dos Emiratos. "No prazo de uma geração", uns 25 anos, Portugal deveria acumular neste fundo nada menos que “um montante igual ao de 60% do PIB nacional, ou seja, o equivalente ao máximo de dívida soberana segundo os tratados europeus”. Coisa modesta: em média anual, 3800 milhões de euros, transferidos do orçamento do Estado e das "concessões nacionais" para a principesca conta. Assim, num único ponto do seu programa, o Livre já amortizou a dívida (sem dizer como), relançou a economia e o Estado social, e ainda gerou um superavit anual equivalente a 2,5% do atual PIB, o tal pé-de-meia para acautelar o futuro. Parece que Rui Tavares conhece a localização do petróleo das tais "concessões nacionais"...
A “frente progressista” do “arco constitucional”
O Livre volta a ser claro na definição de uma aliança de governo em torno de uma "frente progressista" assente na defesa da Constituição.
É certo que a defesa da Constituição deve unir toda a oposição contra os ataques do governo. Mas esta linha defensiva não faz um programa de esquerda. Não só porque a barricada é curta (a maioria dos cortes tem sido aplicada contornando os obstáculos constitucionais), mas também porque esta ideia de “frente” é um favor ao Partido Socialista. O PS nunca inscreveu nos seus programas as revisões constitucionais que promoveu depois, no parlamento. Todas e cada uma delas, à direita. Voltará a ser assim quando o PS governar sob o Tratado orçamental. É isso que explica a presença envergonhada da direção do PS na sessão “Libertar Portugal da Austeridade”, na Aula Magna, e sobretudo é isso que explica a escolha de junho passado, em plena crise do governo, quando Seguro preferiu fechar-se em negociações com a direita em vez de corresponder aos desafios que a esquerda lhe lançou.
O "arco constitucional" só defenderá a Constituição enquanto não estiver no governo a aplicar o Tratado orçamental, o mesmo Tratado que o Livre prefere esquecer no seu programa. A “frente progressista” de Rui Tavares é portanto uma senha de passagem para o campo da alternância de sempre: “Não é possível encontrar uma solução sem contar com o PS” (Rui Tavares, DN, 3.2.2014).
Federalismo e governo europeu
Mas a mãe de todas as propostas do Livre é a eleição direta da Comissão Europeia para que se constitua um governo da União. Só com chanceler em Bruxelas e resumido a província ibérica é que Portugal teria finalmente "um quadro legislativo para domesticar o poder do setor financeiro". Estamos a falar da mesma Europa em que a direita sempre dominou o Parlamento Europeu.
A Comissão é hoje o comando do carro de assalto aos países da periferia europeia, determinou catástrofes como a que abateu sobre Chipre, tudo em nome do exclusivo interesse do setor financeiro. Estas instituições não respondem senão às ordens da burguesia alemã e dos poderes seus subalternos. A única hipótese para a esquerda portuguesa está na desobediência como povo, tal como o Syriza preconiza na Grécia ou como as manifestações Que se Lixe a Troika defenderam nas nossas ruas. Para o federalismo do Livre, o caminho é a “democracia europeia” - mais autoridade e reforço do comando europeu. Mais poder para a mesma política.
Não, obrigado. A esquerda europeísta em que o Bloco sempre se situou (e com cujo programa Rui Tavares entrou ao Parlamento Europeu), recusou sempre esse caminho. Em nome da conjugação de dois níveis de decisão: governos/parlamentos nacionais e coordenação europeia, com duas câmaras ou parlamento reforçado.
As “primárias abertas” e a “casta do setor político”
Uma nota final sobre a denúncia pelo Livre da “organização em casta do setor político”.
O Livre anuncia a escolha dos seus candidatos a eleições por um processo de “primárias abertas”, isto é, através de uma votação pública em que qualquer pessoa (inscrita no partido ou não) pode propôr-se para encabeçar a lista do partido ou votar para escolher quem o fará.
Deixemos aqui de parte os problemas concretos que este processo implica, desde logo a vulnerabilidade à ação de poderes exteriores ao partido e ao seu projecto (media, lóbis, finança, etc.) que podem patrocinar e fabricar vencedores de “primárias abertas” como as que o Livre promete fazer. Antes de ser processual, a falência das "primárias abertas" é ideológica. As “primárias abertas” são o exemplo extremo da conceção democrática segundo a qual os partidos têm que proporcionar uma oferta política que responda à procura. E, neste caso, essa oferta política traduz-se em disputa uninominal, serviço que ainda há-de ser reconhecido pelos que andam há anos a querer impor o bipartidarismo através de uma reforma eleitoral em círculos excludentes.
Como escreveu recentemente Alberto Garzón, ativista do movimento dos indignados e deputado da Esquerda Unida espanhola, um partido assim concebido altera os seus critérios ao ritmo a que muda o senso comum na sociedade. E um partido para a transformação social não se dedica apenas a escutar as exigências da cidadania, mas também a tentar transformá-las, combatendo o senso comum em vez de se entregar a ele. A primeira vítima das “primárias abertas” é portanto a própria ideia de partido transformador, de projeto contra-hegemónico em contraste com as ideias feitas.
É evidente que o jogo das "primárias abertas" aposta na profunda crise de credibilidade da representação política. Uma crise real e, em grande parte, merecida - não tanto pelos métodos de escolha dos representantes de cada programa político, mas sobretudo pelo tipo de relação predominante entre eleitos e seus programas. A submissão dos deputados da direita ao vexame do referendo à co-adopção, tal como as patéticas declarações de voto de deputados socialistas na aprovação de orçamentos e revisões constitucionais de direita, tudo isso são ruturas com quem votou, formas de corrupção da democracia representativa e de agravamento da sua crise de credibilidade.
Mas compreende-se que, eleito para Estrasburgo com o programa do Bloco e voltando a Portugal trazendo a aprovação do visto prévio, Rui Tavares prefira outros ângulos para observar a “casta do setor político”.
Comentários
Ainda bem que leem as
Ainda bem que leem as opiniões e contributos dos (e)leitores. Vamos aos 90%. Rui Tavares e o Bloco não são ambos contra a austeridade? Não foram contra as privatizações da EDP, REN, CTT, ANA, TAP e outras empresas públicas? Não defendem ambos a escola pública, o serviço nacional de saúde, a segurança social pública e o estado social? Não defendem a Constituição da República e o aprofundamento dos direitos políticos, económicos e sociais nela inscritos? Não defendem mais democracia local , regional, nacional e europeia e o combate à extrema-direita crescente (olhem para os resultados do referendo na Suiça)? Já agora sabem dizer-me quantas vezes Miguel Portas, Marisa Matias e Rui Tavares votaram da mesma forma no Parlamento Europeu?
Senhor anónimo, comece por
Senhor anónimo, comece por indicar as falsidades de que apontou ao artigo. A ver se a gente se entende
Quem não tem ideias nem
Quem não tem ideias nem razão, ameaça, calunia e insulta. Espero que não seja a opinião dominante no Bloco. Limitei-me a dar uma opinião no que sou acompanhado por personalidades tão diferentes como Ricardo Araújo Pereira ou Isabel do Carmo, dois perigosos traidores e difamadores.
Aqui está a minha resposta no
Aqui está a minha resposta no mesmo local
http://www.ionline.pt/iopiniao/rui-tavares-desafia-sua-sombra/pag/-1
Será que os dirigentes do
Será que os dirigentes do Bloco precisam de falsificar as posições políticas dos outros para justificar as suas? Por que não tentam que as suas boas propostas se tornem as propostas de uma convergência ampla de esquerda(estou a pensar no horário de trabalho de 35 horas como forma de combater o desemprego, por exemplo)? Qual a razão para termos de escolher entre o Livre e o Bloco nas eleições europeias quando 90% das opções políticas de ambos são comuns? Porquê escolher entre Marisa Matias e Rui Tavares se ambos foram bons deputados de esquerda no Parlamento Europeu?
Senhor anónimo, esqueceu-se
Senhor anónimo, esqueceu-se de explicar onde está a falsificação.
Bom artigo. Já fazia falta
Bom artigo.
Já fazia falta diante da voragem de desinformação que anda por aí nas colunas engajadas dos jornais.
Depois de considerar o comentário do "anónimo" das 16h45, "90% das opções políticas de ambos [BE e Livre] são comuns", (terá lido o artigo antes de comentar?!), temo que seja insuficiente perante a força centrípeta da mentira.
Subscrevo o artigo,
Subscrevo o artigo, acrescentando a opinião de que um governo de esquerda só será possível com o PS. Não com esta direção claro, mas com alguns dos seus militantes e apoiantes. Ainda existem alguns verdadeiros socialistas no PS e será com esses que o BE, independentes e outras forças democráticas que conseguiremos rasgar o memorando, renegociar a dívida e voltarmos ao caminho aberto em Abril.
Quanto ao partido Livre não passa de um projeto pessoal de alguém que à nossa boleia, conseguiu umas migalhas do poder aliando-se aqueles que em nome de uma fachada de esquerda fizeram aquilo que a direita queria.
Camaradas Estas opiniões sob
Camaradas
Estas opiniões sob anonimato só congiguram uma de duas situações, ou temos alguem de fora do BE a lançar provocações, ou pior ainda alguem de dentro.
A democracia fez-se para que cada um possa expressar a sua opinião, e parece-me que dentro do BE vigora esse principio, pelo que não faz sentido que algum aderente ou simpatizante faça um apostagem sob o anonimato.
O anonimato é o metodo dos difamadores e traidores se apresentarem publicamente.
Não sei até que ponto se deveria não publicar opinioes expressas sob anonimato.
Este espaço quer-se para debate dos aderentes e simpatizantes do BE e não para provocações sob anonimato.
Cumpriemntos
http://www.ionline.pt/artigos
http://www.ionline.pt/artigos/portugal/rui-tavares-responde-criticas-be-...
Está aqui a resposta do Rui Tavares a, entre outras coisas, este artigo.
A verdadeira tragédia não é a
A verdadeira tragédia não é a vitória da politica centro/direita por quase 40 anos neste País.
É esta ter sido conseguida não pela excelência das propostas desses governos, mas pela guerra fartecida da esquerda, que não se entendendo entre si, passa uma mensagem de intolerância, rigidez e inflexibilidade que só cimenta a certeza do carácter doutrinário e fundamentalista da esquerda, incapaz de se estabelecer pontes entre semelhantes, como governar integrando a diferença e adaptando-se á mudança da diversidade?
O caminho passa por movimentos independentes de cidadãos que decidam não abdicar do poder que detêm em representantes que não detêm nem mérito, integridade ou visão para defender os interesses colectivos de um Povo. A democracia não se esgota nos partidos políticos, têm que se renovar, trazendo para a vida do serviço politico público seres humanos realmente motivados e comprometidos com uma ação ética assente na integridade, responsabilidade e transparência.
A verdadeira vocação da politica deve assentar em promover seres humanos felizes, não em perpetuar instituições e convenções que se perpetuam á custa da desigualdade, lucro imoral, miséria, violência, exclusão e alienação de seres humanos e outras formas de vida e recursos planetários.
Os tempos requerem visões alargadas, flexíveis, integrais para problemas globais que só podem ser resolvidos por ações locais concertadas assentes em convergências de sinergias.
É tempo de agir, ser a mudança que se quer ver manifestada.
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