Está aqui

A lição de Damasco

Um restaurante fundado por refugiados sírios na Estrada de Moscavide oferece o jantar a profissionais de saúde que combatem o Covid 19. Podia ser notícia. E devia. Mas não é.

É um pequeno e despretensioso restaurante criado por refugiados sírios e fica na Estrada de Moscavide, mesmo na fronteira entre os concelhos de Loures e de Lisboa. É conhecido pelo húmus, pelo falafel e pelo kibbeh, uma espécie de pastel de massa de carne e bulgur. Diz que é um maná. Chama-se Tayybeh, que em português significa generoso e delicioso. Mas podia chamar-se solidariedade. Ou compaixão.

Nesta que é certamente uma das horas mais negras, Ramia Abdalghani e Alaa Ghunim, dois engenheiros informáticos que, fugidos da guerra em Damasco, procuraram em Lisboa o seu porto seguro, deram o exemplo de como deve ser a vida em comunidade, nesta ou noutra qualquer: ajudar quando é preciso.

No olho do furacão, em plena pandemia de Covid-19, decidiram oferecer um jantar por cada elemento das equipas médicas de emergência de serviço no combate ao vírus. Apelando a que a oferta fosse divulgada junto dos médicos e enfermeiros de serviço, para que a mensagem chegasse aos destinatários, os dois refugiados sírios pretenderam, desta forma, agradecer “a todas as equipas médicas” na linha da frente de combate à pandemia.

O Taybbeh é muito mais do que um restaurante. A ideia inicial de criar oportunidades de emprego para ajudar refugiadas sírias em Portugal, e, ao mesmo tempo, divulgar a gastronomia e cultura do país já o provava. Mas, o objetivo da inclusão pelo prato serve agora uma lição fria a muitos e muitas que há muito se demitiram de pensar.

O mundo ao contrário

Enquanto Ramia e Alaa ajudam, como podem, as equipas médicas em Portugal, a mais de 4300 quilómetros de distância, em Lesbos, na Grécia, a notícia de um caso confirmado de Covid-19 no campo de refugiados de Moria, onde mais de 20 mil homens, mulheres e crianças, a grande maioria com menos de 18 anos, vivem em condições sub-humanas, criou uma onda de violência e xenofobia sem precedentes.

Médicos e jornalistas são atacados diariamente por milícias de vigilantes, muitos deles oriundos de países vizinhos, e várias estruturas do campo, sobretudo armazéns com comida e até uma escola improvisada, são arrasados e incendiados pela turba ululante.

Entretanto, do outro lado do mundo, o incoerente e errante presidente Trump tenta, a todo o custo, com elevados incentivos económicos, garantir o direito exclusivo para os norte-americanos de uma potencial vacina contra o Covid-19, na qual trabalha uma empresa alemã, subsidiada por vários países europeus.

Sociedade quo vadis?

Parece certo que quando a tempestade passar, dificilmente tudo será como dantes. Com boa parte das economias devastadas, milhões de desempregados e os estados sociais a lamber as feridas, caberá a nós, cidadãos e cidadãs do mundo, decidir que caminho seguir.

De um lado, uma sociedade mais justa, alicerçada no bem-estar das comunidades, na justa distribuição da riqueza, na estruturação de serviços públicos fortes e bem apetrechados para todos, privilegiando o investimento público na Saúde, na Educação, na Habitação e na Segurança Social. Uma sociedade onde a ética falará mais alto do que a ambição, onde a satisfação das necessidades de todos estará sempre primeiro do que a sede de poder de alguns.

Do outro, o passo em frente para o abismo. A tentativa global de manutenção das elites, do status quo que agoniza, procurando à força ressuscitar um sistema profundamente desigual, geneticamente injusto e comprovadamente cruel.

De fora, no sofá, aguardam pacientemente os Trumps, os Bolsonaros, os Salvinis, os Venturas. Aqueles que sabem que, para reinar não é preciso criar, nem propor, nem estruturar, nem construir. Para reinar, nem sequer é preciso argumentar, convencer ou comprovar. Basta instigar, criticar, lançar intrigas e atoadas. Dizer tudo e o seu contrário, ao sabor da chusma que vocifera avidamente no espaço digital. E, depois, aguardar pacientemente pelo arder do circo.

E nós, para que lado penderemos no final?

Sobre o/a autor(a)

Jornalista
Termos relacionados Covid-19
(...)