Está aqui

LGBTI mas “respeitáveis”

São cada vez mais as pessoas e as organizações que neste dia se colocam do lado dos direitos LGBTI. No entanto, não faltam exemplos de discriminação contra pessoas LGBTI, das formas mais explícitas, às mais implícitas.

Esta semana celebrámos o Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia, Bifobia e Interfobia. São cada vez mais as pessoas e as organizações que neste dia se colocam do lado dos direitos LGBTI. No entanto, não faltam exemplos de discriminação contra pessoas LGBTI, das formas mais explícitas, às mais implícitas.

Perante a reprodução generalizada dos slogans do movimento LGBTI, especialmente nesta altura do ano, pode parecer-nos que há um consenso em torno dos nossos direitos. De que direitos falamos? Podemos afirmar com certeza que o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, o direito à adoção e à PMA são conquistas importantes no caminho para a igualdade das pessoas LGBTI. Porém, a igualdade não é garantida apenas pelo reconhecimento legal de direitos. As pessoas LGBTI continuam a ser “toleradas” e não plenamente reconhecidas como iguais. Esta desigualdade é, entre outras razões, fruto da sua subrepresentação, mas também da forma como são representadas.

Há largas décadas que os direitos LGBTI têm sido promovidos numa lógica de “política da respeitabilidade”, em que a luta pela igualdade das pessoas LGBTI se faz sublinhando a sua semelhança com o grupo maioritário. O slogan “amor é amor”, ou o “direito a amar” são dos exemplos mais difundidos desta prática. Permitem a identificação da maioria com a vivência LGBTI, sublinhando uma semelhança: o amor como linguagem universal. Ainda que estes slogans tenham constituído uma importante ferramenta na conquista de direitos, têm o efeito preverso de circunscrever a aceitação das pessoas LGBTI à sua inclusão em modelos socialmente construídos e aceites de relações sexuais, afetivas, ou mesmo familiares.

Esta forma de fazer política serviu-nos na conquista de direitos, especialmente no âmbito da família. Mas a “respeitabilidade” não se explica apenas pela luta num campo tão potencialmente conservador quanto o da família. Explica-se igualmente por questões históricas. Entre outros exemplos, a epidemia do VIH conduziu a estratégias de higienização da imagem das pessoas LGBTI, conotadas com a promiscuidade. As referências constantes ao amor e à família servem de antídoto contra a imagem lascivamente “suja” associada às pessoas LGBTI. Estas referências não são, portanto, uma forma de combater o conservadorismo, mas sim de normalizar as relações LGBTI mediante critérios socialmente maioritários. A preferência pela representação pública das pessoas LGBTI em relações monogâmicas estáveis e duradouras, pais e mães de famíla, em detrimento de outro tipo de experiências, constitui tanto uma estratégia de luta, como uma resposta defensiva.

Defeitos da “política da respeitabilidade”

Alguns textos1 têm chamado a atenção para dois defeitos da “política da respeitabilidade”: o seu efeito de marginalização secundária e a sua fragilidade. A representação de relações LGBTI como uma espécie de “variação” do modelo tradicional de relação faz depender a aceitação das pessoas LGBTI da sua conformidade com este modelo. Isto resulta numa dupla marginalização das pessoas LGBTI que não podem, ou não querem, reproduzir o modelo dominante, entre as quais aquelas cuja luta passa essencialmente por questões de identidade de género e não (só) pela orientação sexual. Esta representação “respeitável” invisibiliza as experiências reais das pessoas LGBTI, marginaliza-as duplamente ao colocá-las num patamar inferior ao das relações heteronormativas, inclusive entre pessoas LGBTI, e promove o policiamento entre elas, ameaçadas pelo contágio da imagem desviante e da desclassificação social a ela associada.

Adicionalmente, a normalização das pessoas LGBTI pela via da “pureza” das suas relações tem ainda implicações relacionadas com o género. Em primeiro lugar, contraria a emancipação sexual pela qual o feminismo tem lutado. A higienização pela via do sentimento e pelo fim último da coabitação e constituição de família contraria a liberdade sexual que devolve às mulheres o seu próprio corpo e lhes reconhece, sem preconceitos, o desejo sexual e o direito ao prazer - monopólio masculino. É no entrelaçamento e fortalecimento destes princípios feministas que se defende, por exemplo, o direito ao aborto. Por sua vez, a reprodução de ideais construídos de família, casamento e amor tende a aparecer publicamente divorciada do questionamento das dinâmicas domésticas tradicionais que oprimem estruturalmente as mulheres. Estas dinâmicas podem e, muitas vezes, são reproduzidas entre casais LGBTI. Portanto, quando assente numa lógica de “respeitabilidade”, o potencial de emancipação coletiva da luta LGBTI é neutralizado.

A fragilidade da “política da respeitabilidade” é visível em casos como as recentes declarações do presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia. Independentemente de a varíola poder ser transmitida entre quaisquer pessoas, o facto de os poucos casos registados em Portugal terem sido detetados entre homens que fizeram sexo com homens, pressupondo múltiplos parceiros, foi suficiente para que Vítor Duque tivesse afirmado que o vírus “transmite-se através de contactos íntimos, neste momento entre homens” e equacionasse uma “epidemia entre os homossexuais que eventualmente se pode alastrar a toda a população”.2 Perante o desvio da norma, a orientação sexual foi, mesmo que entre linhas, apresentada por Vítor Duque como elemento de perigosidade. Apesar de a varíola poder ser transmitida por outros meios que não relações sexuais, Vítor Duque associou-a indubitavelmente a relações sexuais entre homens, despertou o fantasma do VIH, e não mereceu qualquer esclarecimento ou contraditório por parte da CNN. A forma como as suas declarações foram veiculadas são também ilustrativas da facilidade com que, perante o desvio da norma - neste caso a equação de múltiplos parceiros sexuais – a estigmatização das pessoas LGBTI é perpetuada. A CNN não procurou enumerar outras formas de transmissão do vírus, como o contacto próximo (e não sexual) com a pessoa infetada. A CNN não procurou verificar se, no Reino Unido, onde os primeiros casos foram registados, o padrão se repetia – 4 em 7 casos correspondem a homens que têm sexo com homens no Reino Unido.3 A CNN não elencou sintomas, nem cuidados a ter por parte das pessoas LGBTI, o que seria compreensível, uma vez que veiculou a sua suposta especial vulnerabilidade. Antes, permitiu a sua culpabilização e estigmatização.

Só o combate ao conservadorismo e ao puritanismo pode contribuir para uma verdadeira emancipação das pessoas LGBTI, uma vez que são armas usadas especialmente contra si

A conclusão a reter deste exemplo é a seguinte: a luta pela igualdade das pessoas LGBTI não se deve fazer socorrendo às mesmas normas e representações do aceitável que regem o patriarcado e a heteronormatividade. A “política da respeitabilidade” depende de um comportamento continuamente igual à norma maioritária. Qualquer deslize justifica o regresso à marginalidade. Com isto não se afirma que o policiamento do comportamento das pessoas LGBTI é responsabilidade das próprias pessoas LGBTI. O que se afirma é o que Audrey Lorde tão bem metaforizou: the master’s tools will never dismantle the master’s house.4 Só o combate ao conservadorismo e ao puritanismo pode contribuir para uma verdadeira emancipação das pessoas LGBTI, uma vez que são armas usadas especialmente contra si.

Estas questões têm sido trabalhadas no plano das ciências sociais que nos dizem, inclusive, que os benefícios da “política da respeitabilidade” podem não superar os seus perigos. Aliás, numa experiência feita com pessoas cis heterossexuais confrontadas com dois exemplos de notícias sobre pessoas LGBTI, a diferença de preconceito relativamente a um casal de pessoas do mesmo sexo, monogâmico, numa relação estável, não variou de forma significativa relativamente ao mesmo casal numa relação poliamorosa.5 Dentro dos limites do “laboratório”, este exemplo pode servir pelo menos para nos questionarmos em nome de quem estaremos a sacrificar a representação positiva de todas as pessoas LGBTI? Em nome de outras pessoas LGBTI, ou dos imperativos morais que nos são impostos? Não tem uma pessoa LGBTI (ou qualquer outra) que não pretende uma relação estável e tem múltiplos parceiros sexuais, com ou sem amor, o mesmo direito à igualdade que uma pessoa monogâmica, numa relação estável aspirando a constituir família?

A representação das pessoas LGBTI deve ser plural e positiva nessa pluralidade. Devemos pugnar por esta representação. Numa encruzilhada entre o crescimento de forças conservadoras e a multiplicação de espaços de representação LGBTI, devemos exigir que estes espaços garantem uma representação positiva que nos permita combater a raíz do preconceito. Os media constituem um importante veículo de representações e devem ser responsabilizados, tanto na vertente jornalística, como na da cultura e do entretenimento. Independentemente do cumprimento dos códigos morais heteronormativos, as pessoas LGBTI devem podem viver vidas plenas, em oposição aos cenários trágicos em que muitas vezes somos representadas e que nos levam a aspirar à normatividade (ex: kill your gays6). Viver plenamente implica viver livre do policiamento e da prescrição das nossas vidas e relações.

1 Ver, por exemplo:

Gotby, Alva. 2018. ‘Love Won’t Save Us: LGBT Politics and The Couple Form’. MAI: Feminism and Visual Culture. https://maifeminism.com/love-wont-save-us-lgbt-politics-and-the-couple-form/

Jones, Philip Edward. 2021. ‘Respectability Politics and Straight Support for LGB Rights’. Political Research Quarterly.

Strolovitch, Dara Z., and Chaya Y. Crowder. 2018. ‘Respectability, Anti-Respectability, and Intersectionally Responsible Representation’. PS: Political Science & Politics 51(02):340–44.

4 “As ferramentas do senhor nunca desmantelarão a sua própria casa.”

5 Jones, Philip Edward. 2021. ‘Respectability Politics and Straight Support for LGB Rights’. Political Research Quarterly.

6 Expressão popularizada entre pessoas LGBTI para se referir às frequentes mortes das pessoas LGBTI em filmes e séries, ou a finais infelizes.

Sobre o/a autor(a)

Ativista anti-propinas, bolseira de investigação e dirigente do Bloco de Esquerda.
(...)