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Leite e a Reforma da PAC – É preciso um novo rumo

Essa ajuda deverá passar por fortes apoios à transformação nas pequenas unidades e na organização da venda o mais perto possível dos consumidores.

O estado da agricultura europeia não é mais do que o resultado das orientações políticas que lhe foram aplicadas ao longo dos anos. Ao mesmo tempo que a produção agrícola tem uma total capacidade para alimentar o mundo, mais de uma em cada sete pessoas no planeta sofre de fome. O produtivismo desenfreado e a crença cega no mercado livre são os principais factores que têm tido o efeito mais nefasto no espaço rural e no ambiente. A UE não é excepção. Em nome da “competitividade" e do sacrossanto mercado, reforma após reforma, a preferência comunitária foi sacrificada e a regulação dos mercados abandonada. Década após década, por vezes em detrimento da saúde pública, dos pequenos produtores e dos consumidores, os diferentes pacotes da PAC tiveram como característica comum a concentração dos meios de produção a favor do agronegócio e da grande distribuição. Acresce a esta política a criação de condições que levam à eliminação das pequenas explorações familiares. Continuam a ser a mesma.

Veja-se o caso do leite: num mercado inundado, ao invés de adoptar uma política concertada de produção e estabilização de preços, a decisão de Bruxelas, apoiada ao longo dos tempos por PS, PSD e CDS, foi pela auto-regulação e pelo salve-se quem puder. Depois de instalar o caos com o fim do regime de quotas, que, embora não sendo perfeito, dava alguma garantia de preços, a UE alija as suas responsabilidades e atira o problema para cima de cada país, individualmente. No caso português, por exemplo, são dinheiros nacionais que serão usados para permitir as medidas mitigadoras desta crise como a redução das contribuições para a Segurança Social e as ajudas ao desendividamento dos produtores, suas famílias e trabalhadores. Chegados aqui, estamos sozinhos. Afinal, onde anda a Política Agrícola Comum?

Num contexto de grande incerteza - pós Brexit e no quadro das negociações para os pacotes comunitários 2020-2027 - creio que temos a obrigação de promover uma visão diferente das políticas agrícolas públicas e exigir uma ambiciosa mudança de rumo. Em primeiro lugar, qualquer política agrícola comum deverá garantir a soberania e segurança alimentar dos seus povos. A produção deve ser apoiada para responder às necessidades humanas, assegurando a todos os cidadãos e cidadãs uma alimentação de qualidade, nutritiva e gustativa.

Deve dar-se início a um modelo mais ecológico, com explorações mais pequenas e autónomas, agrícola e economicamente. O fomento de um modelo de escoamento baseado em circuitos curtos e fornecimento local - em cada cidade, em cada aldeia - é essencial. O modelo da pequena agricultura familiar responde a tudo isto. Esta continua a ser a principal fornecedora das necessidades alimentares na Europa e no mundo. É essencial que a nova PAC reforce principalmente este modelo, sobretudo para colmatar as dificuldades de organização dos pequenos produtores. Essa ajuda deverá passar por fortes apoios à transformação nas pequenas unidades e na organização da venda o mais perto possível dos consumidores. As autarquias, em virtude do conhecimento privilegiado que têm dos universos locais e do acesso a programas de ajudas europeias, têm aqui um papel fundamental.

É também importante estabelecer fortes instrumentos de regulação de mercado e agilizar medidas contra a especulação. Entre os quais, rever em alta as taxas sobre importações de produtos que existem cá, ou que aqui podem ser facilmente produzidos. Mas atenção, para que cada país se possa emancipar da especulação internacional e do domínio dos mercados predadores, é essencial lutar contra os nacionalismos e construir fortes relações de solidariedade entre os povos. A aplicação da preferência comunitária e a suspensão dos acordos bilaterais de livre-comércio (CETA e TTIP, por exemplo) são condições fundamentais para atingir estes objectivos.

Por último, viver do trabalho agrícola com dignidade é uma exigência social que a todos deverá convocar. A remuneração justa dos trabalhadores rurais é uma condição imprescindível para o desenvolvimento do emprego agrícola e para a coesão social, nacional e europeia. Tal condição requer garantia de preços, planificação da produção, regulação do mercado, preservação das terras e um forte apoio às explorações e fileiras mais frágeis, mas necessárias. Estas mudanças deverão ser assumidas e iniciadas em qualquer PAC pós-2020. O sector leiteiro beneficiará, com certeza, destas novas orientações, principalmente as pequenas explorações que, entretanto, vão desaparecendo. Fazer a mesma coisa e esperar resultados diferentes, é ser pouco inteligente. Por tudo isto, um novo rumo é preciso.

Artigo originalmente publicado na revista Produtores de Leite (nº16) dinamizada pela APROLEP - Associação de Produtores de Leite de Portugal

Sobre o/a autor(a)

Linguista. Dirigente distrital do Porto do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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