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“Laicos, graças a Deus”: a invisibilidade institucional num país multirreligioso

Falar de invisibilidade social diz respeito à existência de sujeitos que se encontram numa situação social vulnerável e marginalizada, seja pela via da indiferença, seja pelo preconceito.

São, portanto, pessoas que habitam as “franjas” da sociedade, afastadas, simbolicamente, do palco da vida social, figurantes nas sombras. Em consequência, a invisibilidade tende a produzir uma imagem distorcida da realidade, ao fazer crer que determinados fenómenos sociais são inexistentes. Isto é válido tanto para a invisibilidade étnica quanto para a invisibilidade religiosa, uma vez que toda a invisibilidade pressupõe a marginalização, ainda que não intencional. Esta situação é mais delicada quando a invisibilidade ocorre a um nível institucional.

Do ponto de vista legal, a Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho), dispõe, através dos seus artigos 2º, 3º e 4º, sobre o princípio da igualdade das igrejas perante o Estado, da separação entre Estado e igrejas, e sobre o princípio da não confessionalidade do mesmo. No entanto, se tal diploma assegura um conjunto de direitos inalienáveis aos cidadãos e organizações religiosas, não encontramos nenhum artigo ou diploma que disponha sobre o combate à discriminação, ao preconceito ou à invisibilidade religiosa. Com efeito, uma visita ao sítio da Comissão da Liberdade Religiosa (CLR), órgão independente de consulta da Assembleia da República e do Governo, não permite encontrar uma carta de intenções no sentido da promoção do diálogo inter-religioso e do combate aos problemas que acima elenco. Esta situação configura um problema que não é de menor dimensão. Diferentes estudos revelam que a sociedade portuguesa experienciou, desde o 25 de abril de 1974, um processo irreversível de “desestruturação da unidade católica”, para usar os termos do pesquisador Alfredo Teixeira, e uma dinâmica de novas filiações religiosas em direção aos mais diversos sistemas religiosos, fenómeno acelerado pelos movimentos migratórios.

Apesar dos avanços recentes em matéria de garante à dignidade religiosa, particularmente pela via da lei mencionada, a verdade é que o panorama de diálogo inter-religioso em Portugal continua a refletir uma determinada leitura da pluralidade religiosa, situação que se encontra refletida na composição da CLR. Em Portugal, o diálogo inter-religioso continua a ser feito numa “zona de conforto” específica, que inclui as religiões abraâmicas, o budismo, o hinduísmo e, a espaços, a comunidade Bahá’i. Esta seleção, que traduz uma preponderância do modelo monoteísta e de religiões filosóficas, comporta uma carga de invisibilidade evidente face a movimentos e organizações religiosas distantes daqueles modelos, e que se cruzam, em alguns casos, com invisibilidades raciais. Com efeito, o recurso ao argumento demográfico para explicar a concentração das iniciativas inter-religiosas nestes segmentos religiosos, é fraco, haja visto a baixíssima representação social da fé Bahá’i. Ora, quando pegamos nos exemplos das igrejas cristãs africanas, como a Kimbanguista ou a Tocoísta, ou nas religiões afro-brasileiras, movimentos religiosos com uma representação demográfica já bastante significativa, e uma história ligada à alvorada da Democracia em Portugal, compreendemos a existência de um fenómeno que cruza, claramente, preconceito, racismo e invisibilidade. Ora, tais religiões, ou segmentos religiosos (no caso das igrejas afro-cristãs), não se compaginam nem com uma perceção de autenticidades religiosas, nem com o manual de relações interconfessionais, estabelecido com base na igualdade e não na diferença. Tratam-se, portanto, de religiões institucionalmente invisibilizadas, mesmo que legalmente reconhecidas, situação que reflete a poeira da história do Evolucionismo, do determinismo racial e do racismo biológico. São religiões cuja existência é permitida desde que seja civilizacionalmente invisível, tanto pelo contraste cultural, ritual e cosmológico que representam, quanto pela capacidade que têm de reivindicar o passado colonial que se quer branqueado.

Sobre o/a autor(a)

Doutorado em Estudos Africanos pelo ISCTE-IUL. Mestre em História e Cultura das Religiões pela FLUL. Investigador Integrado do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL.
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