Está aqui

Jean Wyllys e a indelicadeza da dignidade

Na casa de horrores em que se transformou a Câmara dos Deputados do Brasil, talvez a maior brecha de humanidade tenha sido aberta pelo ato de Jean Wyllys que, ao cuspir na direção do seu opressor, recusou renunciar à sua dignidade.

Em dezembro de 2015 um deputado brasileiro, Jean Wyllys, foi insultado e cuspiu na direção de outro deputado, Jair Bolsonaro. Mais tarde foi aberto um processo à indelicadeza de Jean Wyllys que pode custar-lhe uma suspensão do mandato por falta de “decoro parlamentar”. Estes são os factos, o que não quer dizer que seja esta a verdade. Para isso é preciso conhecer melhor as personagens e o contexto do episódio.

16 de dezembro, decorria a votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados. Toda a gente se recorda da frase que escandalizou o mundo democrático: “pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff (...) o meu voto é sim”. Esta não seria a primeira nem a última declaração hedionda do militar e deputado da direita reacionária Jair Bolsonaro mas foi certamente a que reabriu as feridas mais profundas na sociedade brasileira.

Diz-me quem admiras, dir-te-ei quem és. Para compreender a estirpe de Bolsonaro temos de conhecer melhor quem foi o seu homenageado Carlos Alberto Brilhante Ustra. Protagonista da ditadura militar, foi o único militar brasileiro declarado torturador pela justiça, acusado pelo desaparecimento e morte de pelo menos 60 pessoas e pela tortura de pelo menos 500. Por não ser sobre ele este artigo, poupar-me-ei à transcrição dos dolorosos relatos das suas vítimas, entre os quais o de Dilma Rousseff.

Por sua vez, Jean Wyllys é um popular jovem deputado negro e gay da esquerda brasileira, nomeado pela reputada revista The Economist como uma das 50 personalidades mais influentes do mundo na defesa da diversidade. É um incansável e corajoso ativista na defesa dos direitos sexuais e de género, empenhado na luta anti-golpe no Brasil.

Jean Wyllys tem uma história particular. Durante todos os anos em que foi deputado foi obrigado a ouvir insultos a caminho da tribuna ou durante as suas intervenções. Nesse dia de dezembro, ainda mais do que em todos os outros, Jean Wyllys deslocava-se para a sua intervenção debaixo de uma chuva de insultos: “veado”, “bichinha”, “queima-roscas”, vociferados também pelo deputado que homenageou o mais violento torturador da ditadura. Revoltado, Wyllys materializou o nojo que tantos de nós sentimos naquele momento, e cuspiu na direção de Bolsonaro.

A reação emotiva pode custar-lhe o mandato mas essa tentativa de afastamento de Jean Wyllys não tem nada a ver com o decoro parlamentar há muito perdido. Um parlamento democrático, onde um fascista pode impune e reiteradamente agredir um deputado eleito com insultos homofóbicos, já não tem vergonha a defender. A cumprir-se, a pena não passará de um castigo para quem não se mostrou dócil, uma lição para que todos saibam que no Brasil as agressões à comunidade LGBT devem ser toleradas e normalizadas.

A maioria dos democratas percebeu que esta é mais uma farsa no caminho da tragédia da democracia brasileira. Inúmeras personalidades brasileiras e internacionais juntaram-se à solidariedade com Jean Wyllys, incluindo Dilma Rousseff e Fernando Henrique Cardoso, ex Presidentes do Brasil eleitos à esquerda e à direita.

Quero humildemente juntar-me a esse coro. Nas palavras que Jean uma vez pediu emprestadas ao dramaturgo Dias Gomes, “há um mínimo de dignidade que se deve conservar, mesmo que seja em troca de sol, mesmo que seja em troca de liberdade”. Na casa de horrores em que se transformou a Câmara dos Deputados naquele 17 de dezembro, talvez a maior brecha de humanidade tenha sido aberta pelo ato de Jean Wyllys que, ao cuspir na direção do seu opressor, recusou renunciar à sua dignidade.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 3 de março de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
Comentários (3)