Está aqui

Irlanda: O fatídico 11º mandamento

Uns quantos irlandeses pecaram por quantos dedos tinham nas mãos e o país falhou o mais importante: foi apanhado.

Se queremos compreender uma economia é melhor começar pelo próprio país. Há alguns anos atrás, mais do que gostaria de recordar, conheci boa parte da Irlanda andando à boleia. Estrada fora era possível colher impressões sobre o que ia mudando e sobre aquilo que do país antigo ia permanecendo. Na altura era já possível vislumbrar vários exemplos de novas casas em construção de aspecto bastante afluente. Mas, entre essas casas, lá continuava o farto tapete verde da ruralidade ancestral. Nesse tempo o país era ainda conhecido como "tigre celta" e não como um animal de quinta do qual se fazem salsichas. No entanto, a metamorfose de "tiger" a "pig" pode ser demasiado súbita.

O mandamento rectificativo

Uma vez uma furgoneta velha encostou à berma e lá dentro um agricultor de idade fez uns ruídos. Sentei-me ao seu lado e o bom homem lá entabulou conversa. Durante o que me pareceram ser 15 longos minutos não percebi uma ú-ni-ca palavra que ele disse. Imaginei mesmo que o ancião me pregava uma partida dirigindo-se a mim em gaélico. Num momento de felicidade, porém, o cérebro fez-se e percebi que por trás de um sotaque cerradíssimo havia um idioma em inglês. Momento precioso porque é nesse instante que o rotundo condutor se volta com um inesperado ar de cerimónia e atira:
- "Sabe, nós aqui na Irlanda somos tão católicos que não temos dez mandamentos. Temos onze!" Convidei-o com o meu interesse juvenil a revelar esse princípio ético extra.
- "Pois, amigo, o 11º mandamento é o mais importante: NÃO SER APANHADO."

"Indescritivelmente deprimente"

Hoje, é o que sabemos. Uns quantos irlandeses pecaram por quantos dedos tinham nas mãos e o país falhou o mais importante: foi apanhado.

Durante as duas últimas décadas a Irlanda conheceu tempos vibrantes de transformação. Outrora um território agrícola tornou-se numa economia dinâmica, baseada em serviços, apostada na atracção de investimento directo estrangeiro e dependente do comércio internacional. Entre 1995 e 2007 o PIB irlandês cresceu 6% ao ano. Esta pequena economia era a menina dos olhos de todos aqueles que afirmavam ser possível reformar uma velha e atrasada região periférica da Europa a partir de receitas baseadas no liberalismo económico, na baixa de impostos e na aposta em serviços sofisticados e globalizados como a banca moderna. O que se passou a seguir foi um balde de água fria.

Em 2008 a actividade económica travou abruptamente e na economia instalou-se uma recessão crónica. Em 2008 o PIB caiu 3% e em 2009 quase 8%. Em 2010 estimativas credíveis apontam para uma contracção que pode ir até 14% (fonte: ERSI, um "think tank" irlandês de referência). Quanto ao desemprego a situação é calamitosa: mais do que duplicou de Outubro de 2008 (6,1%) a Outubro de 2010 (13,5%). Muitos observadores caracterizam a situação como "indescritivelmente deprimente" (fonte: jornal irlandês Independent, 29 de Abril 2010, quando o descalabro da banca começava a ganhar contornos mais claros).

Do cheque especulativo ao choque de sobriedade?

No entanto este frio choque não chegou, ainda assim, para acordar todos da ébria idolatria ao defunto mito irlandês. Há um ano atrás encontrava-se em preparação um orçamento de austeridade que muitos dos nossos comentadores do costume elogiaram como grande iniciativa exemplar (em particular Bagão Félix e Ernâni Lopes, mas também tantos outros que durante anos e anos a fio sempre nos convidaram para seguir a embriaguez celta). Tratou-se de um caso de cortes históricos em serviços públicos e assistência social. Entre os quais o célebre corte médio de 15% nos salários dos funcionários do Estado.

Hoje a Irlanda tem um défice de 32%, dois terços do qual devido às perdas do sistema bancário agora nacionalizado. O Ministro das Finanças diz-se "verdadeiramente chocado", mas acrescenta que continua a acreditar no modelo de "economia liberal" que tornou a Irlanda um "tigre". No contexto de mais um escândalo (descobriu-se que os bancos nacionalizados perdoaram milhões de euros de dívidas de especuladores imobiliários que estiveram no centro da crise), o governo prepara-se para apresentar mais um orçamento de austeridade, mas enfrenta uma massiva taxa de rejeição popular: mais de 80% da população quer que o actual governo saia (sondagem do presente mês). Muitos comentadores afirmam que "se está a matar a economia para salvar bancos que era suposto ajudarem o país, mas que continuam sem injectar o crédito de curto prazo vital às PME." Ou, que se está a gerir "uma crise de procura agregada contraindo ainda mais a procura agregada." E sobretudo: "A Irlanda é agora vista aos olhos de muitos como o exemplo horrífico do que uma política de austeridade pode fazer." (citações extraídas do jornal Sunday Independent, 17 de Outubro 2010).

A vista a partir da austeridade

Anos volvidos desde a minha primeira visita à Irlanda, onde agora estive em trabalho e não à boleia, pude falar com muita gente. Um alto quadro de um sector tecnológico diz-me: "Estou a trabalhar mais 30% do que há dois anos, ganho menos 30% que há dois anos, mas não me queixo ... pelo menos tenho trabalho." Um trabalhador por conta de outrem confessa-me: "perdi metade da pensão que estava a acumular há 25 anos." Outra pessoa diz-me que toda a gente está com medo do próximo orçamento, "vai acabar com a economia." Ainda outro irlandês diz: "Os mais novos estão a ir embora, a emigrar, aqui não há nada."

No entanto, ninguém me resumiu de modo mais brutal o que verdadeiramente se passou do que um taxista: "Este país foi violado financeiramente!". E perguntei-lhe: mas numa sociedade civil onde a religião tem tanto peso a Igreja Católica não tem sido uma força de amparo social? A que ele respondeu: "Olhe, depois dos escândalos de pedofilia já ninguém acredita na igreja." A resposta deixou-me em silêncio. Há pecados que nem estavam previstos nos mandamentos originais. A crise económica é uma crise de confiança é uma crise moral.

E, enquanto, seguia na direcção do aeroporto, pensei ... neste momento o único consolo desta gente em relação ao PIB irlandês é essa instituição chamada "pub irlandês", santuário onde pelo menos a cerveja é honesta e a música é alegre.

Artigo publicado no jornal Diário Económico em 25 de Outubro de 2010

Sobre o/a autor(a)

Professor de Economia. Diretor da Licenciatura em Economia, ISCTE-IUL Business School.
(...)