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Investigação científica em Portugal: fronteiras fechadas?

O Bloco de Esquerda apresentou no Parlamento um projecto de resolução para que predominem critérios científicos nos concursos e para que não se excluam os estrangeiros.

O novo regulamento para atribuição de bolsas de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) contém pela primeira vez normas que objectivamente impedem os investigadores estrangeiros de se candidatarem a essas bolsas no nosso país. A alteração é polémica e já deu origem à mobilização de investigadores, à criação de um movimento e a debates públicos sobre o assunto. O próprio presidente da FCT viu-se obrigado a enviar, através da base de dados da fundação, um comunicado em que esclarece as mudanças, enfatizando a generosidade portuguesa mas confirmando na prática a exclusão de investigadores de outros países a candidatarem-se a bolsas de doutoramento. O Bloco de Esquerda apresentou no Parlamento um projecto de resolução para que predominem critérios científicos nos concursos e para que não se excluam os estrangeiros. Esse projecto será discutido no Parlamento nesta terça-feira, dia 15 de Junho. É importante que se perceba do que falamos, quais as alterações concretas e quais as razões que justificam a oposição a esta política de exclusão.

Os investigadores estrangeiros são mesmo excluídos? Isso está no regulamento?

Os investigadores estrangeiros são excluídos das bolsas de doutoramento e isso está no novo regulamento. A FCT alterou três artigos (17º. 19º e 20º) relativos à elegibilidade dos candidatos. O que passa a acontecer é que se exige que estes possuam uma autorização de residência permanente ou estatuto de residente de longa duração. Na prática, a consequência é a exclusão de candidaturas de cidadãos estrangeiros que, apesar de estarem devidamente regularizados junto dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, não estão em Portugal há pelo menos cinco anos, já que é esse o período mínimo necessário para requerer a autorização de residência permanente ou estatuto de residente de longa duração.

Não faz nenhum sentido que, quando um investigador se candidata, tenha de estar a viver em Portugal há 5 anos. Porque muitas vezes a vinda para Portugal depende da existência de condições de poder desenvolver o seu trabalho neste país, ou seja, depende precisamente do resultado da bolsa a que se candidata.

O presidente da FCT, no esclarecimento que dirigiu aos investigadores, diz que “Portugal continua a financiar, através da FCT, bolsas de doutoramento a estrangeiros não residentes”, mas depois clarifica em que moldes: “as bolsas são atribuídas sem obrigatoriedade de residência permanente a cidadãos estrangeiros cujas candidaturas estejam inseridas em acordos ou parcerias internacionais em que o Estado Português seja parte ou tenha assumido responsabilidades nesse âmbito”. Ou seja, podem candidatar-se ao abrigo de acordos internacionais como aquele que existe com o MIT ou com Harvard. Mas isso é insignificante. A maior parte dos investigadores estrangeiros que hoje têm bolsa para desenvolverem os seus trabalhos no nosso país fazem-no em programas de doutoramento e em projectos que estão fora desses acordos. Aliás, a maior parte das instituições portuguesas que estão inseridas em redes internacionais e que têm protocolos com outras universidades e centros de investigação não são incluídas neste critério. Por outro lado, a FCT tenta lançar a confusão entre as bolsas de pós-doutoramento que, até ver, continuam a ter como preponderantes os critérios científicos e estas alterações que têm dado polémica, que são sobre as bolsas de doutoramento.

Se não podemos dar bolsas a toda a gente, que critérios devemos exigir?

Os critérios de atribuição de bolsas de investigação para doutoramento devem ser rigorosos e devem concentrar-se sobre a avaliação científica do projecto que o investigador se propõe fazer, sobre o mérito do candidato, sobre a qualidade da instituição que o acolhe, sobre a proposta que faz de difusão dos resultados. É assim que tem sido e assim deve ser. Devem ser atribuídas bolsas aos candidatos que apresentem maior capacidade, que tenham projectos melhores e mais relevantes cientificamente, que sejam acolhidos por instituições com qualidade que consideram o seu trabalho pertinente e útil para o seu desenvolvimento, que proponham formas de difusão de resultados que assegurem que há um retorno do conhecimento produzido para o conjunto da comunidade científica e da sociedade. Esses são os critérios relevantes. O que não faz sentido é haver projectos considerados bons ou excelentes, haver vontade de um centro de investigação de acolher um determinado candidato, haver até necessidade e vantagem em tê-lo em Portugal, haver um júri científico que considera aquela candidatura importante e depois ela ser vedada pela sobreposição a todos estes critérios de um princípio de exclusão de pessoas que não têm nacionalidade portuguesa.

Ter bolsa em Portugal é um direito de todas a gente? Por que é que Portugal deve financiar investigadores de outras nacionalidades?

Ter bolsa de investigação não é um “direito” de ninguém. A bolsa é uma das formas do Estado incentivar a qualificação do país e das pessoas. A política científica deve basear-se em critérios que assegurem que se produz a melhor ciência. Desse ponto de vista, toda a investigação produzida em Portugal é “ciência portuguesa”, independentemente da origem de quem está cá a trabalhar. Aliás, tal como noutras áreas, nós devemos precisamente atrair para Portugal os melhores cientistas, por razões não apenas científicas e éticas mas até económicas. Miguel Soares, um responsável do Instituto Gulbenkian para a Ciência, que é provavelmente o maior centro de investigação em Portugal, certamente com bem mais de uma centena de cientistas das áreas biomédicas, colocava o problema da seguinte forma: “o melhor para Portugal é termos os melhores cientistas. É como a selecção nacional: por que é que temos brasileiros? Eu tenho dois estudantes estrangeiros, talvez os melhores, e a partir de agora eu e os outros laboratórios não podemos ter os melhores”.

A questão é portanto muito concreta: estamos em condições de dispensar estes estudantes e estes investigadores ou, pelo contrário, precisamos deles e beneficiamos em tê-los cá? É que no debate sobre o regulamento da FCT está obviamente uma questão de não discriminação e de inclusão, mas está além disso em causa a capacidade de desenvolvimento do nosso sistema científico e a capacidade que temos de poder seleccionar os bolseiros em função da sua qualidade, e não do país de onde vêm.

Não devia ser cada país a financiar os seus estudantes? E não corremos o risco de financiar pessoas que depois vão “para fora”?

O que o Ministro tem dito, nomeadamente quando o confrontamos há alguns meses no Parlamento sobre este tema, é que cada país deve financiar os seus estudantes. Mas este argumento tem pelo menos três problemas.

O primeiro é que parte do princípio de que os bolseiros são só estudantes – e essa é uma divergência de fundo que temos com o Governo. Para nós, os bolseiros de investigação, entre os quais se incluem os de doutoramento, não são estudantes a quem fazemos o favor de acolher nas nossas universidades. São pessoas que fazem formação (e nesse sentido “estudam”) mas são também trabalhadores, que produzem ciência. Por isso temos insistido num estatuto social e laboral, que estabeleça um sistema misto e a celebração de contratos – mas o PS, o PSD e o PP sempre se opuseram a esta ideia e chumbaram no mês passado no Parlamento os projectos da Esquerda que iam nesse sentido. Como trabalhadores que exercem a sua actividade no nosso país, estes investigadores são uma mais-valia para Portugal.

O segundo problema é que também há muitos portugueses que beneficiam de bolsas atribuídas por outros países – e não consta que alguma vez nos tenhamos queixado disso. Pelo contrário, esses apoios foram imprescindíveis para a qualificação de muitos dos cientistas e universitários portugueses. Podemos ficar contentes porque, se regressarem, esses estudantes e investigadores terão uma qualificação que pode ser útil para o nosso país. Ou podemos lamentar “a fuga de cérebros” e a nossa incapacidade de atrair e fixá-los cá. Mas não protestamos porque outros países estão a apoiar o seu trabalho.

A terceira questão é que uma investigação produzida em Portugal tem sempre consequências positivas cá. As pessoas trabalham com outros investigadores, participam de equipas, fazem divulgação de resultados. Se é importante ter exigências e critérios concretos sobre a partilha desse conhecimento e a sua difusão, pois que se estabeleçam esses critérios – mas a exclusão de investigadores estrangeiros em nada contribui para isso.

Nesta terça-feira discutiremos, por isso, que política científica queremos. A discussão deste regulamento e do projecto do Bloco poderia ser resumida assim: queremos que, na atribuição de bolsas, o que conta sejam os critérios da ciência ou o lugar onde as pessoas nasceram?

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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