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Inflação: morrer da cura?

Em breve estaremos confrontados com a mesma escolha [dos anos 1970]: atualizar salários e pensões enquanto se controla os preços e as margens de lucro de setores estratégicos ou, pelo contrário, esmagar salários e pensões para proteger os lucros.

Um pouco de inflação é, em geral, desejável. Significa que a economia está a funcionar. Se for acompanhada por aumentos salariais, a inflação não produz perda de poder de compra e tem o efeito de tornar as dívidas antigas mais pequenas. Embora este efeito prejudique os credores, a sociedade beneficia com o alívio do peso da dívida.

Na última década, a Europa e os EUA sofreram o problema oposto, uma vez que as economias tiveram preços estagnados ou até deflação (diminuição dos preços). Isso deveu-se à falta de poder de compra da população, sob os efeitos da crise e da austeridade, da precariedade e dos baixos salários. Mas as autoridades decidiram enfrentar o problema por outro lado, o lado da finança.

Assim, desde o final da crise que os principais bancos centrais, como o BCE e a FED, injetaram triliões de euros (ou dólares) nos mercados financeiros através da compra de ativos aos bancos. Em teoria, estas políticas deveriam aumentar a disponibilidade financeira dos bancos, que emprestariam mais às famílias e empresas, as quais iriam investir e consumir mais. No fim, os preços subiriam. Mas não foi isso que aconteceu. Até ao final de 2020, a inflação recusou-se a aumentar. Para onde foram então os triliões dos bancos centrais, se não se transformaram em investimento produtivo, salário e consumo? Se olharmos à nossa volta, encontraremos setores hiperinflacionados, bem nas barbas dos bancos centrais: o imobiliário, as bolsas de valores, os mercados financeiros em geral.

Quando escolheram enfrentar o problema da estagnação económica atirando triliões para os mercados financeiros, os bancos centrais da UE e dos Estados Unidos criaram bolhas financeiras e dificultaram o acesso de milhões de pessoas à habitação: o imobiliário tornou-se um ativo especulativo por excelência.

Em 2021, o cenário começou a mudar e a alta de preços generalizou-se. Há quem argumente que os apoios dados às famílias e empresas durante a pandemia contribuíram para este resultado. Se existe, esse efeito é mínimo, quando comparado com os efeitos que a pandemia e a guerra causaram na disrupção de cadeias de abastecimento e, em particular, no preço dos combustíveis. Mas nem a restrição na oferta de combustíveis e matérias-primas pode explicar tudo o que se passa no mundo dos preços. Por exemplo, nos EUA, dados oficiais mostram que as margens de lucro das empresas são as maiores em setenta anos. Ou seja, para além das próprias empresas energéticas, as maiores empresas estão a aproveitar este momento para aumentar as suas margens à custa dos consumidores.

Temos ouvido a direita, em especial a Iniciativa Liberal, indignar-se com os impostos sobre os combustíveis. Esses impostos devem descer, mas não é por esquecimento que os liberais se calam sobre quem lucra com a vida difícil de todos os outros.

Nos anos 70 do século passado, quando a inflação disparou na sequência da crise do petróleo, havia duas hipóteses: controlar preços e margens de lucro ou impor austeridade, com desemprego e cortes salariais para esmagar a procura de bens, mesmo provocando uma recessão. O Governo e o banco central norte-americanos, inspirados pelas mesmas teorias que hoje animam os liberais, optaram pela austeridade.

Em breve estaremos confrontados com a mesma escolha: atualizar salários e pensões enquanto se controla os preços e as margens de lucro de setores estratégicos ou, pelo contrário, esmagar salários e pensões para proteger os lucros. Os liberais já tomaram posição e, até agora, o governo não dá sinais de querer fazer diferente.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 5 de abril de 2022

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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